terça-feira, 13 de abril de 2010

Distintos modos do celebrante oferecer a Missa: versus populum, versus Deum, modo intermediário


Rafael Vitola Brodbeck


Segundo a tradição litúrgica universal, que vem dos tempos apostólicos, perseverou nas catacumbas, perpassou a Idade Média e a Idade Moderna, chegando até nós em todos os ritos, orientais e ocidentais, a posição ordinária do sacerdote na maior parte da celebração da Santa Missa é voltado para Deus – versus Deum –, i.e., com ele entre o povo e o altar. Evidentemente, nas partes em que dialoga com a assembléia, sendo representante de Deus para ela, volta-se, conforme as próprias rubricas do Missal, para os fiéis. Permanece, pois, “de costas” ao povo para falar com Deus.


Todavia, a partir dos anos 50 do século XX, alguns já começaram a celebrar, eventualmente, na posição versus populum, i.e., voltados para o povo, com o altar entre o sacerdote e o povo. Alegavam que as celebrações primitivas eram assim – o que se demonstrou não ser verdadeiro – e também que a Missa, como ceia, era melhor representada desse modo. Todavia, além de tal posição não ter encontrado guarida na tradição da Igreja, a Missa, se bem que também ceia, é mais do que isso: é sacrifício. E sacrifício oferecido a Deus, portanto o sacerdote, normalmente, deve voltar-se para Ele.
Faz-se uma ressalva ao costume medieval nas basílicas romanas de se celebrar versus populum, mas para melhor simbolizar o sacrifício e preservar a posição ad Orientem de modo físico, não apenas espiritual, uma vez que tais basílicas foram construídas de maneira que o sacerdote, para oferecer o sacrifício de frente ao Oriente, deva colocar-se diante do povo, olhando para ele. Note-se, entretanto, que, durante o Cânon, ou Oração Eucarística, o povo todo ficava de costas para o padre, olhando para o Oriente junto com ele, em uma só atitude de adoração. Essa posição versus populum nas basílicas romanas foi, claro, invocada quando as celebrações desse modo começaram a se popularizar.
As rubricas do atual Missal Romano permitem a celebração versus populum, quer porque se generalizou tal costume (pela argumentação modernista, ou pela argumentação das basílicas romanas), quer porque o povo poderia ver o que se passa no altar. Sem embargo, essa permissão não é uma obrigatoriedade, e qualquer sacerdote pode licitamente celebrar versus Deum, como tradicionalmente se fazia. Isso explicamos no item seguinte.

Afaste-se, portanto, o equivocado pensamento de que a celebração versus Deum é somente reservada ao uso extraordinário do rito romano (ou seja, o rito romano tal qual celebrado até a reforma litúrgica pós-conciliar), como também a tese modernista de que a Missa, como ceia, deve ser feita, necessariamente, ou mais apropriadamente, de frente ao povo. A celebração versus populum, permitida pela lei litúrgica, não é essencial e, segundo a maioria dos liturgistas, nem mesmo demonstra tão explicitamente o caráter da Missa. Em nossa opinião, a melhor – embora, infelizmente, não mais tão amplamente usada – posição do celebrante, na Missa, é a versus Deum.
Uma terceira opção, intermediária, é possível, a partir das rubricas do Missal em vigor: celebrar os Ritos Iniciais e a Liturgia da Palavra versus populum, e a Liturgia Eucarística e os Ritos Finais, versus Deum.


De qualquer modo, seja na posição versus Deum, seja na versus populum, seja na opção intermediária, o celebrante deve voltar-se para o povo nas partes em que o Missal assim dispõe.
O altar construído longe da parede – que já existia antes da reforma, sendo comum nas catedrais medievais, notadamente nas basílicas romanas – pode ser usado tanto para a celebração versus populum, como para a versus Deum: basta escolher o lado do altar no qual se deseja celebrar. Eles não foram construídos, originalmente, para que a Missa fosse celebrada versus populum, e sim para que o padre pudesse circundá-lo na incensação. O altar construído junto à parede obviamente só permite a celebração versus Deum, mas tal tipo de altar só pode ser erguido, de acordo com a lei em vigor, em casos excepcionais (claro que os que já existem e não puderem ser removidos ou modificados sem prejuízo para sua preservação ou para seu valor artístico ou histórico podem continuar, e um outro altar, no meio do presbitério, é construído).
Quando oferece o sacrifício da Missa versus populum, o celebrante deve evitar mirar o povo, exceto quando as rubricas assim o mandam. Desse modo, ainda que de frente para os fiéis, irá concentrar-se em Deus e não no povo que está frente a ele. Os olhos devem estar focados no Missal, na cruz sobre o altar, ou em um ponto da igreja que mostre sua impessoalidade, ou seja, que não está celebrado para os fiéis, senão para Deus – pelos fiéis. Mais atenção a esse cuidado se deve ter durante a Oração Eucarística, principalmente na Consagração.
Evidentemente, quando celebra com a assistência de um só ministro (as chamadas Missas sine populo – sem povo – ou Missas privadas), o sacerdote celebrará, por sua própria natureza, sempre versus Deum.
§ 16. Versus Deum no rito romano moderno?
Muitos pensam que o Missal de 1970, o Novus Ordo, instituindo a nova forma de celebrar a Missa romana, o chamado rito romano moderno ou forma ordinária, este de cujas cerimônias tratamos na presente obra, teria modificado a direção a qual deve estar voltado o sacerdote celebrante. Ledo engano, a posição do ofertante foi mantida a mesma. É o que informam recentes documentos da Sagrada Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, bem como o próprio Papa Bento XVI, à época Cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, em entrevista por ocasião do lançamento de seu livro “Introdução ao espírito da liturgia”.
Também das próprias rubricas do Missal Romano de Paulo VI encontramos as informações que confirmam tal ensino: o sacerdote deve, segundo tais textos, durante a Liturgia Eucarística, “voltar-se para o povo” durante alguns atos; isto significa que, se deve voltar-se ao povo, é porque antes estava voltado ad Orientem. “Estes avisos que em certos momentos o sacerdote esteja ‘voltado para o povo’ seriam supérfluos, se o sacerdote durante toda a celebração ficasse atrás do altar e frente ao povo.”[i]
Enfim, o Papa João Paulo II celebrava diariamente, na capela de seu apartamento, a Missa versus Deum, dando as costas ao povo. É uma celebração com a participação de alguns convidados e não uma Missa sine populo. Assim, não se pode nem opor a esse fato que não exista povo na mesma para que se fique de frente para ele. Sim, há povo, e mesmo assim é uma Missa versus Deum, e no rito moderno, atual, pós-conciliar. Também Paulo VI e João Paulo I celebravam assim, e Bento XVI continua a fazê-lo. Quando de sua visita ao Brasil, em 2007, uma das Missas que o atual Sumo Pontífice celebrou para poucos convidados no Mosteiro de São Bento, em São Paulo, foi justamente versus Deum.
Isso, aliás, não é nenhuma surpresa, uma vez que nunca a posição ad Orientem foi expressamente proibida por algum decreto, nem esse foi o desejo dos Padres do Concílio Vaticano II, autor da reforma litúrgica. Outrossim, essa é a forma histórica de oferecimento da Missa, observada inclusive pelos ritos orientais.
Mesmo assim, ainda que a norma seja a manutenção da direção do sacerdote ad Orientem, também conhecida como versus Deum foi permitida pela reforma a posição versus populum, i.e., voltado para o povo, atrás do altar, forma, aliás, que se disseminou mundialmente, tornando-se bastante popular, por força da Instrução Geral sobre o Missal Romano – IGMR.
Uma nota publicada, em 1993, pela Sagrada Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, em seu boletim Notitiae, reafirmou o valor de ambas as opções, celebração versus populum ou versus Deum, de modo que quaisquer dúvidas devem ser dissipadas.

O motivo da celebração versus Deum, ad Orientem, é principalmente o reforço do caráter do sacerdote como sendo o próprio Cristo, seu sacerdócio unido, pela Ordem, ao de Nosso Senhor e Salvador. Assim, “de costas para o povo”, o padre está, na verdade, à sua frente, como líder, como aquele que, em nome da humanidade, mostra-se diante de Deus, e, agindo Cristo por Ele, oferece um sacrifício. Virando-se para os fiéis nos momentos oportunos, é o representante de Deus que nos dá a bênção. E, desse modo, por ser Cristo Deus e Homem ao mesmo tempo, o padre, se é Seu ministro, age ora representando a humanidade ora a divindade, e a Única Pessoa de Jesus, em Suas duas naturezas, mediante o sacerdócio dos que Lhe são especialmente consagrados pelo sacramento da Ordem, oferece Seu sacrifício por nossos pecados.
“(…) a imolação incruenta, por meio da qual, depois de pronunciadas as palavras da Consagração, Jesus Cristo torna-se presente sobre o altar no estado de Vítima, é levada a cabo somente pelo sacerdote, enquanto representante da Pessoa de Cristo, e não enquanto representante da pessoa dos fiéis.”[ii]
Além do quê, na Missa, mesmo versus populum, sempre estamos “de costas” uns para os outros. Que mal há no padre também ficar?
Mais ainda, ele não está simplesmente dando as costas ao povo, mas virando-se, junto com ele, para a mesma direção. O sacerdote, na Missa versus Deum, posiciona-se exatamente com o restante dos fiéis: todos miram o mesmo alvo, todos olham para o mesmo lugar, todos estão alinhados, como um verdadeiro povo, à frente do qual está o sacerdote, seu líder. Interessante é observar que os setores liberais e progressistas, defendendo a exclusividade da Missa versus populum, acabam criando um clericalismo que eles mesmos criticam, opondo sacerdote e fiéis uns aos outros.

Além disso, por óbvio centra a atenção do povo no sacerdote e a atenção do sacerdote no povo, ao invés de ambos centrarem-se em Deus. O culto versus populum acaba, na prática, favorecendo o antropocentrismo. Evidentemente, nem todos os que celebram versus populum assim o fazem, pois é perfeitamente possível a Missa externamente voltada para o povo e, ao mesmo tempo, espiritualmente centrada em Deus. É o atual Papa, quem ensina: “Quando o sacerdote celebra versus populum, sua orientação espiritual deveria ser sempre versus Deum per Iesum Christum [para Deus, por meio de Jesus Cristo].”[iii] Entretanto, ainda que a versus populum não seja, em si, antropocêntrica ou negadora da absoluta centralidade de Cristo na Eucaristia, não há como negar que a celebração versus Deum favorece, pela posição do sacerdote, a centralização da Missa em Deus.
Sem dúvida que em qualquer posição, o padre olha para Deus. Mas a posição versus Deum é mais simbólica nesse sentido. Até porque, por tal argumento, deveríamos, então, em vez de olhar para o altar, olharmos todos uns para os outros.  O padre não fica “de costas”, propriamente, mas “olhando na mesma direção que nós”.
Posição esta que é tradicional não só no rito romano (seja o tradicional, seja o novo – apesar de, nesta última forma, não ser tão comum), como nos ritos orientais (e mesmo nos demais ritos latinos).
“Sobre a orientação do altar para o povo, não há sequer uma palavra no texto conciliar. Ela é mencionada em instruções pós-conciliares. A mais importante delas é a Institutio generalis Missalis Romani, a Introdução Geral ao novo Missal Romano, de 1969, onde, no número 262, se lê: “O altar maior deve ser construído separado da parede, de modo a que se possa facilmente andar ao seu redor e celebrar, nele, olhando na direção do povo [versus populum]”. A introdução à nova edição do Missal Romano, de 2002, retomou esse texto à letra, mas, no final, acrescentou o seguinte: “Isso é desejável sempre que possível”. Esse acréscimo foi lido por muitos como um enrijecimento do texto de 1969, no sentido de que agora haveria uma obrigação geral de construir – “sempre que possível” – os altares voltados para o povo. Essa interpretação, porém, já havia sido repelida pela Congregação para o Culto Divino, que tem competência sobre a questão, em 25 de setembro de 2000, quando explicou que a palavra “expedit” [é desejável] não exprime uma obrigação (…).”[iv]
“Por último, penso que se o sacerdote rezasse, em algumas ocasiões, a Liturgia Eucarística versus Deum – algo perfeitamente possível segundo as normas atuais –, isso também ajudaria a perceber qual é a orientação espiritual da Liturgia – em direção a Deus, o que não significa nenhum desprezo do Povo. Aliás, alguém diz para a pessoa do banco da frente: ‘você está de costas para mim’?; ou que os noivos, no sacramento do Matrimônio, estão de ‘costas para o povo’?”[v]
Em resumo, no Novus Ordo Missae, na forma de rito romano promulgada por Paulo VI, em uso na Igreja Ocidental desde então, pode o sacerdote, sem problema algum nem oposição dos superiores ou dos Ordinários, celebrar “de costas aos fiéis”, na posição versus Deum, tradicional, própria, e muito mais rica dos pontos-de-vista teológico, histórico e mesmo espiritual. Longe de afastar os fiéis, essa prática só os faz crescer ainda mais na compreensão do mistério da Cruz, tornado presente em cada Santa Missa. Tomara essa posição do sacerdote seja revalorizada, para que o antropocentrismo dê lugar a quem de direito, ainda mais na Missa, Cristo Rei, que no altar, invisível e incruentamente, se imola ao Pai por nós. Mais elevados espiritualmente, melhores cristãos sairão os fiéis de uma Missa em que se observe até mesmo esse aparente detalhe da posição do celebrante: embora, substancialmente, a Missa seja a mesma, tal elemento acidental muito favorece a que tenhamos a correta apreensão da idéia de sacrifício, além de acrescentar à sacralidade do rito e à piedade de todos os que dela tomam parte, transmitindo a riqueza multissecular da Santa Igreja Católica.
[i] RUDROFF, Pe. Francisco. Santa Missa, Mistério de nossa Fé, Anápolis: Serviço de Animação Eucarística Mariana, 1996, p. 110, nota 37; cf. ELLIOTT, op. cit., p. 23
[ii] Sua Santidade, o Papa Pio XII. Encíclica Mediator Dei[iii] RATZINGER, Cardeal Joseph. Versus Deum per Iesum Christum. A introdução do decano do Sacro Colégio ao livro de Uwe Michael Lang, in “30 Dias”, março de 2004
[iv] idem. ibidem.
[v] BELLO, Joathas, Algumas reflexões sobre a liturgia, disponível emhttp://ictys.blogspot.com/2005/10/algumas-reflexes-sobre-liturgia.html

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