quarta-feira, 16 de março de 2011

Santo Padre: Lectio Divina com os seminaristas da Diocese de Roma


LECTIO DIVINA 
DO PAPA BENTO XVI

Capela do Seminário
Sexta-feira, 4 de Março de 2011

(Assista aqui o Vídeo)

Queridos irmãos e irmãs!
Sinto-me muito feliz por estar aqui, pelo menos uma vez por ano, com os meus seminaristas, com os jovens que estão a caminho rumo ao sacerdócio e serão o futuro presbitério de Roma. Sinto-me feliz por que isto acontece no dia de Nossa Senhora da Confiança, da Mãe que nos acompanha com o seu amor dia após dia e nos dá a confiança de prosseguir rumo a Cristo.
«Na unidade do Espírito» é o tema que guia as vossas reflexões durante este ano formativo. É uma expressão que se encontra precisamente no trecho da Carta aos Efésios, que nos foi proposto, onde são Paulo exorta os membros daquela comunidade a «manter a unidade do espírito» (4, 3). Este texto abre a segunda parte da Carta aos Efésios, a chamada parte parenética, exortativa, e começa com a palavra «parakalo», «exorto-vos». Mas é a mesma palavra que está presente também no termo «Paraklitos», portanto é uma exortação na luz, na força do Espírito Santo. A exortação do Apóstolo baseia-se no mistério de salvação, que ele tinha apresentado nos primeiros três capítulos. Com efeito, o nosso trecho inicia com a palavra «portanto»: «portanto... exorto-vos...» (v. 1). O comportamento dos cristãos é a consequência do dom, a realização do que nos é concedido todos os dias. E, contudo, se é simplesmente realização da doação que nos foi oferecida, não se trata de um efeito automático, porque com Deus estamos sempre na realidade da liberdade e por isso — porque é resposta, também a realização da doação é liberdade — o Apóstolo deve recordá-lo, não pode dá-lo por certo. O Baptismo, sabemo-lo, não produz automaticamente uma vida coerente: ela é fruto da vontade e do compromisso perseverante de colaboração com o dom, com a Graça recebida. E este compromisso é empenhativo, há um preço a pagar pessoalmente. Talvez por isto são Paulo faz referência precisamente neste ponto à sua condição actual: «Recomendo-vos, pois, eu mesmo, prisioneiro no Senhor...» (Ibid.). Seguir Cristo significa partilhar a sua Paixão, a sua Cruz, segui-lo até ao fim, e esta participação no destino do Mestre une profundamente a Ele e fortalece a influência da exortação do Apóstolo.
Entramos agora no fulcro da nossa meditação, encontrando uma palavra que chama de modo particular a nossa atenção: a palavra «chamada», «vocação». São Paulo escreve: comportai-vos «de uma maneira digna do chamamento, da klesis que recebestes» (cf. ibid.). E repete isto logo a seguir, afirmando que «... existe uma só esperança no chamamento que recebestes, a vossa vocação» (v. 4). Neste caso, trata-se da vocação comum a todos os cristãos, ou seja, da vocação baptismal: o chamamento a pertencer a Cristo e a viver n'Ele, no seu corpo. Dentro desta palavra está inscrita uma experiência, ressoa o eco da experiência dos primeiros discípulos, a que conhecemos pelos Evangelhos: quando Jesus passou às margens do lago da Galileia, e chamou Simão e André, depois Tiago e João (cf. Mc 1, 16-20). E ainda antes, no rio Jordão, depois do baptismo, quando, apercebendo-se de que André e o outro discípulo o seguiam, lhes disse: «Vinde ver» (Jo 1, 39). A vida cristã começa com um chamamento e permanece sempre uma resposta, até ao fim. E isto quer na dimensão do crer, quer do agir: tanto a fé quanto o comportamento do cristão são correspondência à graça da vocação.
Falei do chamamento dos primeiros apóstolos, mas pensamos com a palavra «chamamento» sobretudo na Mãe de todas as chamadas, em Maria Santíssima, a eleita, a Chamada por excelência. O ícone da Anunciação a Maria representa muito mais do que aquele especial episódio evangélico, mesmo sendo fundamental: contém todo o mistério de Maria, toda a sua história, o seu ser; e ao mesmo tempo fala da Igreja, da sua essência de sempre; assim como de cada crente em Cristo, de qualquer alma cristã chamada.
Neste ponto devemos ter presente que não falamos de pessoas do passado. Deus, o Senhor, chamou cada um de nós, cada um é chamado pelo seu nome. Deus é tão grande que tem tempo para todos nós, conhece-me, conhece cada um de nós pelo nome, pessoalmente. É um chamamento pessoal para cada um de nós. Penso que devemos meditar várias vezes este mistério: Deus, o Senhor, chamou-me, chama-me, conhece-me, espera a minha resposta como esperava a resposta de Maria, aguardava a resposta dos Apóstolos. Deus chama-me: este facto deveria tornar-nos atentos à voz de Deus, atentos à sua Palavra, à chamada que me faz, para responder, para realizar esta parte da história da salvação à qual me chamou.
Depois são Paulo, neste texto, indica-nos alguns elementos concretos desta resposta com quatro palavras: «humildade», «mansidão», magnanimidade», «suportando-vos uns aos outros no amor». Talvez possamos meditar brevemente estas palavras com as quais se expressa o caminho cristão. No final, voltaremos a falar mais uma vez sobre isto.
«Humildade»: a palavra grega é «tapeinophrosyne», a mesma palavra que são Paulo usa na Carta aos Filipenses quando fala do Senhor, que era Deus e se humilhou, se fez «tapeinos», e desceu fazendo-se criatura, fazendo-se homem, até à obediência da Cruz (cf. 2, 7-8). Portanto, humildade não é uma palavra qualquer, uma simples modéstia, uma coisa qualquer... mas é palavra cristológica. Imitar Deus que vem até mim, que é tão grande que se faz meu amigo, sofre por mim, morreu por mim. Esta é a humildade que se deve aprender, a humildade de Deus. Significa dizer que devemos ver-nos sempre à luz de Deus; assim, ao mesmo tempo, podemos conhecer a grandeza de ser uma pessoa amada por Deus, mas também a nossa pequenez, a nossa pobreza, e deste modo comportar-nos de modo justo, não como donos, mas como servos. Como diz são Paulo: «Não porque pretendamos dominar a vossa fé: queremos apenas contribuir para a vossa alegria» (2 Cor 1, 24). Ser sacerdote, ainda mais do que ser cristão, requer esta humildade.
«Mansidão»: no texto grego é esta a palavra «praütes», a mesma que aparece nas bem-aventuranças: «Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra» (Mt 5, 5). E no Livro dos Números, o quarto livro de Moisés, encontramos a afirmação de que Moisés era o homem mais manso do mundo (cf. 12, 3) e, neste sentido, era uma prefiguração de Cristo, de Jesus, que diz de si: «Eu sou manso e humilde de coração» (Mt 11, 29). Portanto, também esta palavra, «manso», «humilde», é uma palavra cristológica e exige de novo este imitar Cristo. Porque no Baptismo somos conformados com Cristo, portanto devemos conformar-nos com Cristo, encontrar este espírito do ser mansos, sem violência, de convencer com o amor e com a bondade.
«Magnanimidade», «makrothymia» significa generosidade do coração, não ser minimalistas que dão só o que é estreitamente necessário: demo-nos a nós mesmos com tudo o que pudermos, e cresçamos também nós na magnanimidade.
«Suportando-vos no amor»: é uma tarefa de todos os dias suportar-se uns aos outros na própria alteridade, e precisamente suportando-se com humildade, aprender o amor verdadeiro.
E demos agora um passo em frente. Depois desta palavra do chamamento, segue a dimensão eclesial. Falemos agora da vocação como de uma chamada muito pessoal: Deus chama-me, conhece-me, espera a minha resposta pessoal. Mas, ao mesmo tempo, a chamada de Deus é um apelo em comunidade, é uma chamada eclesial, Deus chama-nos numa comunidade. É verdade que neste trecho sobre o qual estamos a reflectir não se encontra a palavra «ekklesia», a palavra «Igreja», mas sobressai muito mais a realidade. São Paulo fala de um Espírito e de um corpo. O Espírito cria-se o corpo e une-nos como um único corpo. E depois fala da unidade, da cadeia do ser, do vínculo da paz. E com esta palavra faz menção da palavra «prisioneiro» do início: é sempre a mesma palavra, «eu estou em cadeias», «cadeias amarrar-te-ão», mas por detrás está a grande cadeia invisível, libertadora do amor. Nós estamos neste vínculo da paz que é a Igreja, é o grande laço que nos une com Cristo. Talvez devamos meditar também pessoalmente sobre este aspecto: somos chamados pessoalmente, mas num corpo. E isto não é algo abstracto, mas muito real.
Neste momento, o Seminário é o corpo no qual se realiza concretamente o ser num caminho comum. Depois, será a paróquia: aceitar, suportar, animar toda a paróquia, as pessoas, as simpáticas e as que não são, inserir-se neste corpo. Corpo: a Igreja é corpo, portanto tem estruturas, tem também realmente um direito e algumas vezes não é tão simples inserir-se. Sem dúvida, desejamos a realização pessoal com Deus, mas muitas vezes o corpo não nos agrada. Mas precisamente deste modo estamos em comunhão com Cristo: aceitando esta corporeidade da sua Igreja, do Espírito, que se encarna no corpo.
Por outro lado, com frequência talvez sintamos o problema, a dificuldade desta comunidade, começando pela comunidade concreta do Seminário até à grande comunidade da Igreja, com as suas instituições. Devemos ter também presente que é muito bom estar em companhia, caminhar numa grande companhia de todos os séculos, ter amigos no Céu e na terra, e sentir a beleza deste corpo, estar felizes porque o Senhor nos chamou num corpo e nos deu amigos em todas as partes do mundo.
Disse que a palavra «ekklesia» não se encontra aqui, mas sim a palavra «corpo», a palavra «espírito», a palavra «vínculo» e sete vezes, neste pequeno trecho, volta a palavra «um». Assim sentimos como o Apóstolo se preocupa com a unidade da Igreja. E termina com uma «escala de unidade», até à Unidade: Deus é um só , o Deus de todos. Deus é Uno e a unicidade de Deus expressa-se na nossa comunhão, porque Deus é Pai, Criador de todos nós e por isso todos somos irmãos, todos somos um corpo e a unidade de Deus é a condição, é também a criação da fraternidade humana, da paz. Por conseguinte, meditemos também sobre este mistério da unidade e sobre a importância de procurar sempre a unidade na comunhão do único Cristo, do único Deus.
Agora podemos dar um ulterior passo em frente. Se perguntarmos qual é o sentido da palavra «chamada», vemos que ela é uma das portas que se abrem ao mistério trinitário. Até agora falámos do mistério da Igreja, do único Deus, mas sobressai também o mistério trinitário. Jesus é o mediador da chamada do Pai que se realiza no Espírito Santo.
A vocação cristã não pode deixar de ter uma forma trinitária, quer a nível de cada pessoa, quer a nível de comunidade eclesial. O mistério da Igreja está totalmente animado pelo dinamismo do Espírito Santo, que é um dinamismo vocacional em sentido amplo e perene, a partir de Abraão, o primeiro que ouviu a chamada de Deus e respondeu com a fé e a acção (cf. Gn 12, 1-3); até ao «eis-me» de Maria, reflexo perfeito da imagem do Filho de Deus, no momento em que recebe do Pai a chamada para vir ao mundo (cf. Hb 10, 5-7). Assim, no «coração» da Igreja — como diria santa Teresa do Menino Jesus — a chamada de cada cristão é um mistério trinitário: o mistério do encontro com Jesus, com a Palavra que se fez carne, mediante a qual Deus Pai nos chama à comunhão consigo e por isso nos deseja doar o seu Espírito Santo, e é precisamente graças ao Espírito que podemos responder a Jesus e ao Pai de modo autêntico, no âmbito de uma relação real, filial. Sem o sopro do Espírito Santo a vocação cristã simplesmente não se explica, perde a sua seiva vital.
E finalmente a última frase. A forma da unidade segundo o Espírito exige, como disse, a imitação de Jesus, a conformação com Ele na solidez dos seus comportamentos. O Apóstolo escreve, como meditámos: «com toda a humildade e mansidão, com paciência, suportando-vos uns aos outros com caridade», e depois acrescenta que a unidade do espírito deve ser conservada «mediante o vínculo da paz» (Ef 4, 2-3).
A unidade da Igreja não é dada por um «modelo» imposto do exterior, mas é o fruto de uma concórdia, de um compromisso comum a comportar-se como Jesus, em virtude do seu Espírito. Há um comentário de são João Crisóstomo a este trecho, que é muito bonito. Crisóstomo comenta a imagem do «laço», o «vínculo da paz», e diz: «É bonito este vínculo, com o qual nos ligamos quer uns com os outros quer com Deus. Não há uma cadeia que fere. Não causa cãibras nas mãos, deixa-as livres, dá-lhes amplo espaço e uma coragem maior» (Homilias sobre a Epístola aos Efésios 9, 4. 1-3). Encontramos aqui o paradoxo evangélico: o amor cristão é um vínculo, como dissemos, mas um vínculo que liberta! A imagem do laço como vos disse, reconduz-nos à situação de são Paulo, que é «prisioneiro», está num «vínculo». O Apóstolo foi preso por causa do Senhor, como o próprio Jesus, fez-se escravo para nos libertar. Para conservar a unidade do espírito é necessário imprimir ao próprio comportamento aquela humildade, mansidão e magnanimidade que Jesus testemunhou na sua paixão; é preciso ter as mãos e o coração ligados por aquele vínculo de amor que ele mesmo aceitou por nós, fazendo-se nosso servo. Este é o «vínculo da paz». E diz ainda são João Crisóstomo, no mesmo comentário: «Ligai-vos aos vossos irmãos, aqueles assim unidos no amor suportam tudo com facilidade... Assim ele quer que estejamos ligados uns aos outros, não só para estar em paz, não só para ser amigos, mas para todos serem um, uma só alma» (Ibid.).
O texto paulino, do qual meditámos alguns elementos, é muito rico. Pude apresentar-vos só algumas sugestões, que confio à vossa meditação. E rezemos à Virgem Maria, Nossa Senhora da Confiança, para que nos ajude a caminhar com alegria na unidade do Espírito. Obrigado!



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