Apresentamos a passagem “O mistério do traidor", do quarto capítulo do volume, divulgada por Agência Ecclesia e a Principia Editora (Portugal).
O MISTÉRIO DO TRAIDOR
O trecho do lava-pés coloca-nos perante duas formas diversas de reacção do homem a este dom: a de Judas e a de Pedro. Imediatamente depois de ter aludido ao exemplo, Jesus começa a falar do caso de Judas. A este propósito, João refere-nos que Jesus Se sentiu profundamente abalado e declarou: «Em verdade, em verdade vos digo que um de vós Me há-de entregar» (13, 21).
Três vezes fala João da «perturbação» de Jesus: junto do sepulcro de Lázaro (cf. 11, 33.38); no «Domingo de Ramos», depois da palavra sobre o grão de trigo que morre, numa cena que lembra de perto a hora do monte das Oliveiras (cf. 12, 24-27); e, por último, aqui.
São momentos em que Jesus Se encontra com a majestade da morte e é tocado pelo poder das trevas; poder este que é sua tarefa combater e vencer. Voltaremos a esta «perturbação» da alma de Jesus, quando reflectirmos sobre a noite do monte das Oliveiras. Tornemos ao nosso texto. O anúncio da traição suscita, compreensivelmente, agitação e, ao mesmo tempo, curiosidade entre os discípulos. «Um dos discípulos, aquele que Jesus amava, estava à mesa reclinado no seu peito. Simão Pedro fez-lhe sinal para que lhe perguntasse a quem se referia. Então ele, apoiando-se naturalmente sobre o peito de Jesus, perguntou: “Senhor, quem é?”. Jesus respondeu:
“É aquele a quem Eu der o bocado de pão ensopado”» (13, 23-26).
Para a compreensão deste texto, é preciso antes de mais ter em conta o facto de estar prescrito, para a ceia pascal, que se estivesse reclinado à mesa. Charles K. Barrett explica assim o primeiro versículo agora citado: «Os participantes numa ceia estavam reclinados sobre a sua esquerda; o braço esquerdo servia para sustentar o corpo; o direito ficava livre para ser usado. Deste modo, o discípulo à direita de Jesus tinha a cabeça imediatamente diante de Jesus e, por conseguinte, podia-se dizer que estava reclinado junto do seu peito. Obviamente, podia falar confidencialmente com Jesus, mas o seu lugar não era o de maior honra; este situava-se à esquerda do chefe da casa. Seja como for, o lugar ocupado pelo discípulo amado era o lugar de um amigo íntimo»; Barrett observa, neste contexto, que existe uma descrição paralela em Plínio (p. 437).
Tal como aparece transcrita aqui, a resposta de Jesus é totalmente clara. E, todavia, o evangelista anota que os discípulos não compreenderam a quem Ele Se referia. Por isso podemos supor que João, repensando no caso, tenha conferido à resposta uma evidência que, então, não tivera para os presentes. O versículo 18 coloca-nos na pista justa; aí, Jesus diz: «[…] há-de cumprir-se a Escritura: “Aquele que come do meu pão levantou contra Mim o calcanhar”» (cf. Sl 41, 10; Sl 55, 14).
Este é o estilo característico de Jesus falar: com palavras da Escritura, alude ao seu destino, inserindo-o ao mesmo tempo na lógica de Deus, na lógica da história da salvação.
Mais tarde, estas palavras tornam-se completamente claras; fica claro que a Escritura descreve verdadeiramente o seu caminho, mas naquela hora permanece o enigma. Ao princípio, apenas se deduz que
aquele que há-de atraiçoar Jesus é um dos convivas; torna-se evidente que o Senhor tem de sofrer até ao fim e mesmo nos detalhes o destino de sofrimento do justo, um destino que se manifesta de variados modos sobretudo nos Salmos. Jesus tem de experimentar a incompreensão, a infidelidade até no âmbito do círculo mais íntimo dos amigos e assim «cumprir a Escritura». Ele revela-Se como o verdadeiro sujeito dos Salmos, como o «David» de quem provêm e por meio de quem adquirem sentido.
Quando escolheu, em lugar do termo habitualmente usado na Bíblia grega para dizer «comer», a palavra trogein usada por Jesus, no seu grande discurso sobre o pão, para indicar o acto de «comer» o seu Corpo e o seu Sangue, isto é, receber o Sacramento Eucarístico (cf. Jo 6, 54-58), João acrescentou uma nova dimensão à palavra do salmo retomada por Jesus como profecia sobre o seu próprio caminho. Assim, a palavra do salmo lança, de antemão, a sua sombra sobre a Igreja que celebra a Eucaristia no tempo do evangelista como em todos os tempos: com a traição de Judas, não terminou o sofrimento pela deslealdade. «Até o meu amigo íntimo, em quem eu confiava e que comia do meu pão, até ele se levantou contra mim» (Sl 41, 10). A ruptura da amizade chega mesmo à comunidade sacramental da Igreja, onde há sempre de novo pessoas que partilham «o seu pão» e O atraiçoam. O sofrimento de Jesus, a sua agonia, continua até ao fim do mundo, escreveu Pascal, baseando-se em tais considerações (cf. Pensées, VII, 553). Podemos exprimi-lo também a partir do ponto de vista oposto: naquela hora, Jesus carregou a traição de todos os tempos, o sofrimento que deriva de ser atraiçoado em cada tempo, suportando assim até ao fundo a miséria da história.
João não nos oferece nenhuma interpretação psicológica do comportamento de Judas; o único ponto de referência que nos dá é a alusão ao facto de que Judas, como tesoureiro do grupo dos discípulos, teria roubado o seu dinheiro (cf. 12, 6). No contexto que nos interessa, o evangelista limita-se a dizer laconicamente: «E, logo após o bocado, entrou nele Satanás» (13, 27).
Para João, aquilo que aconteceu a Judas já não é explicável psicologicamente. Acabou sob o domínio de outrem: quem rompe a amizade com Jesus, quem se recusa a carregar o seu «jugo suave» não chega à liberdade, não se torna livre, antes pelo contrário torna-se escravo de outras potências; ou mesmo: o facto de atraiçoar essa amizade já resulta da intervenção de outro poder, ao qual se abriu. Entretanto a luz, vinda de Jesus, que caíra na alma de Judas não se tinha apagado totalmente. Há um primeiro passo rumo à conversão:
«Pequei» – diz ele aos seus mandantes. Procura salvar Jesus, devolvendo o dinheiro (cf. Mt 27, 3-5). Tudo o que de grande e puro recebera de Jesus permanecia gravado na sua alma; não podia esquecê-lo.A segunda tragédia dele, depois da da traição, é já não conseguir acreditar num perdão. O seu arrependimento torna-se desespero. Já só se vê a si mesmo e às suas trevas, já não vê a luz de Jesus – aquela luz que pode iluminar e vencer as próprias trevas. Deste modo faz-nos ver a forma errada do arrependimento: um arrependimento que já não consegue esperar, mas só vê a própria obscuridade, é destrutivo, não é um verdadeiro arrependimento. Faz parte do justo arrependimento a certeza da esperança – uma certeza que nasce da fé no poder maior da Luz que Se fez carne em Jesus.
João conclui dramaticamente o trecho sobre Judas com estas palavras: «[Judas] tendo tomado o bocado de pão, saiu logo. Fazia-se noite» (13, 30). Judas vai para fora num sentido mais profundo: entra na noite, vai-se embora da luz para a escuridão. O «poder das trevas» apoderou-se dele (cf. Jo 3, 19; Lc 22, 53).
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