terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

TOTUS TUUS: A Jesus por Maria


Por Padre François-Marie Léthel, OCD 
Prelado da Pontifícia Academia de Teologia


Simone Martini, O Anúncio do Anjo, Firenze, séc XV




O lema Totus tuus, que resume toda a espiritualidade cristocêntrica e mariana de São Luís Maria Grignion de Montfort (1673-1716), foi o fio condutor de toda a vida do Servo de Deus João Paulo II. O santo francês e o seu grande discípulo polaco são dois exemplos luminosos da mesma santidade sacerdotal, de uma vida totalmente vivida no amor de Jesus e dos irmãos sob a guia materna de Maria. Totus tuus! Duas palavras que são uma oração dirigida a Jesus por meio de Maria e do seu Coração Imaculado. É um acto de amor como dom total de si. No mesmo sentido, também Santa Teresa de Lisieux define o amor: «Amar é doar tudo e doar-se a si mesmo».
Luís Maria de Montfort e Teresa de Lisieux são de facto como dois faróis de santidade que iluminaram de modo particular o pontificado de João Paulo II, na grande perspectiva do concílio Vaticano II traçada pela Lumen gentium. As suas obras principais – o Tratado da verdadeira devoção à Santa Virgem de Luís Maria, e a História de uma alma de Teresa – são dois textos doutrinais da máxima importância e perfeitamente convergentes para iluminar o caminho da santidade para todos, como caminho de amor vivido com Maria. A doutrina de Teresa é expressa na narração da sua vida, enquanto a de Montfort é expressa num tratado. Mas os dois, no final dos seus escritos, convidam o leitor a doar-se totalmente e para sempre a Jesus no amor do Espírito Santo, através das mãos e do coração de Maria. Com Maria e em Maria, cada baptizado pode verdadeiramente «viver de amor» na vida quotidiana e realizar a sua vocação à santidade na doação total de si e para sempre. A totalidade e a radicalidade deste dom são expressas através de dois fortes símbolos bíblicos: «Holocausto ao Amor» (Teresa), «Escravidão de Amor» (Luís Maria), em referência ao sacrifício de Jesus, «Holocausto» da nova aliança daquele que assumiu por nós «a condição de escravidão» até à morte na cruz.

Na vida de Karol Wojtyła, este Totus tuus tornou-se como que o respiro da sua alma, o palpitar do seu coração a partir de 1940 quando descobriu, aos vinte anos, o Tratado de Montfort. Muitas vezes, João Paulo II falará acerca de tudo isto. Fê-lo de modo especial em 1996, no momento do seu 50º aniversário de sacerdócio no livro Dom e mistério. Segundo o seu testemunho, foi um leigo, Jan Tyranowski – agora Servo de Deus –, quem lhe fez conhecer o Tratado de Montfort e as Obras de São João da Cruz, abrindo-o à mais profunda vida espiritual, nos anos duríssimos da ocupação nazi na Polónia. O jovem Karol tinha que trabalhar como operário numa fábrica, descobrindo progressivamente no mesmo período a sua vocação para o sacerdócio. Falando deste período, João Paulo II insistia sobre o fio «mariano» que guiara toda a sua vida desde a infância, na sua família, na sua paróquia, na devoção carmelita ao escapulário e na devoção salesiana a Maria Auxiliadora. A descoberta do Tratado – recorda o próprio Papa polaco – ajudou-o a dar um passo decisivo no seu caminho mariano, superando uma certa crise: «Houve um momento no qual de certa forma pus em questão o meu culto por Maria considerando que ele, dilatando-se excessivamente, acabasse por comprometer a supremacia do culto devido a Cristo. Então serviu-me de ajuda o livro de São Luís Maria Grignion de Montfort com o título Tratado da verdadeira devoção à Santíssima VirgemEncontrei nele a resposta às minhas perplexidades. Sim, Maria aproxima-nos de Cristo, conduz-nos a Ele, com a condição de que se viva o seu mistério em Cristo (...). O autor é um teólogo de classe. O seu pensamento mariológico está radicado no mistério trinitário e na verdade da Encarnação do Verbo de Deus (...). Está assim explicada a proveniência do Totus tuus. A expressão provém de São Luís Maria Grignion de Montfort. É a abreviação da forma mais completa da entrega à Mãe de Deus que ressoa assim: Totus tuus ego sum et omnia mea tua sunt. Accipio te in mea omnia. Praebe mihi cor tuum, Maria» (Dom e mistério, pp. 38-39).
Estas palavras em latim, continuamente rezadas e copiadas por Karol Wojtiła nas primeiras páginas dos seus manuscritos, encontram-se no final do Tratado de Montfort, quando o santo convida o fiel a viver a comunhão eucarística com Maria e em Maria. É preciso ressaltar que este Totus tuus se torna para sempre, de 1940 até 2005, a directriz de toda a vida de Karol Wojtyła, como seminarista e sacerdote, depois como Bispo e Papa. Quando, em 1958, é nomeado por Pio XII bispo auxiliar de Cracóvia, escolhe já o Totus tuus como lema episcopal, juntamente com o brasão que simboliza Cristo redentor e Maria ao seu lado, o mesmo que conservará como Papa. E sobretudo vivê-lo-á até ao fim, nos grandes sofrimentos dos últimos meses. Depois da traqueotomia, já não podendo falar, escreverá por último as palavras Totus tuus. Sabemos também através das pessoas mais próximas dele que lia todos os dias um trecho do Tratado.

Nos seus escritos, João Paulo II fez muitas vezes referência a São Luís Maria, como por exemplo na Redemptoris Mater (n. 48). Mas, de modo particular, nos finais do seu pontificado, deixou-nos uma lindíssima síntese da sua doutrina interpretada à luz do concílio Vaticano II, na sua Carta aos religiosos e às religiosas das famílias monfortinas de 8 de Dezembro de 2003. Este é, talvez, o texto mais iluminador para compreender o profundo significado teológico do Totus btuus e do brasão episcopal.
No início da Carta (n. 1), João Paulo II narra de novo a sua descoberta pessoal, com referência ao seu livro Dom e mistério. Citando depois o Tratado, ele insiste sobre a principal característica da sua doutrina: «A verdadeira devoção mariana é cristocêntrica». O fundamento desta doutrina é evidentemente o Evangelho. E é precisamente a partir do texto de São João que é explicado o brasão e o lema Totus tuus: «A Igreja, desde as suas origens, e sobretudo nos momentos mais difíceis, contemplou com particular intensidade um dos acontecimentos da Paixão de Jesus Cristo referido por São João: – Junto da Cruz de Jesus estavam Sua mãe, a irmã de Sua mãe, Maria, mulher de Cleófas, e Maria de Magdala. Ao ver a Sua mãe e junto dela, o discípulo que Ele amava, Jesus disse a Sua mãe: 'Mulher, eis aí o teu filho'! Depois, disse ao discípulo: 'eis aí a tua mãe!' E desde aquela hora, o discípulo recebeu-a em sua casa» (Jo 19, 25-27). Ao longo da sua história, o Povo de Deus experimentou este dom feito por Jesus crucificado: o dom de Sua mãe. Maria Santíssima é deveras a nossa mãe, que nos acompanha na nossa peregrinação de fé, esperança e caridade rumo à união cada vez mais intensa com Cristo, único salvador e mediador da salvação (cf. Lumen gentium, 60 e 62). Como se sabe, no meu brasão episcopal, que é a ilustração simbólica do texto evangélico agora citado, o lema Totus tuus inspira-se na doutrina de São Luís Maria Grignion de Montfort (cf. Dom e mistério, pp. 38-39; Rosarium Virginis Mariae, 15). Estas duas palavras expressam a pertença total a Jesus por meio de Maria: 'Totus tuus ego sum, et omnia mea tua sunt', escreve São Luís Maria».

É no final do Tratado que se encontram as palavras em latim, acima citadas, continuamente recopiadas por Karol Wojtyła, sacerdote, bispo e Papa. Luís Maria ensina a viver a santa comunhão com Maria. Trata-se de renovar a consagração do baptismo nas mãos de Maria para receber com ela o Corpo de Jesus: «Renovarás a tua consagração, dizendo: Totus tuus ego sum, et omnia mea tua sunt. Sou todo teu, minha querida Senhora; com tudo o que me pertence. Implorarás esta boa mãe para que te empreste o seu coração, para nele acolher o seu Filho com as suas mesmas disposições (...). Pedir-lhe-ás o seu coração com estas ternas palavras: Accipio te in mea omnia, praebe mihi cor tuum, o Maria [Considero-te como todo o meu bem, dá-me o teu coração, ó Maria!]» (Tratado da verdadeira devoção à santa Virgem, 266).
Estas palavras são dirigidas ao fiel para a sua plena participação na Eucaristia. Mas têm evidentemente um valor particular para o sacerdote que celebra a missa. Luís Maria di-lo, sempre no final do Tratado, convidando a renovar esta consagração mariana «antes de celebrar ou de participar na santa missa, na comunhão».
As palavras: Accipio te in mea omnia («Considero-te como todo o meu bem») são a aprovação pessoal do texto do Evangelho: Accepit eam discipulus in sua («O discípulo recebeu-a em sua casa», Jo 19, 27). Maria é um dom que o discípulo recebe continuamente do próprio Jesus, e que acolhe na doação de si expressa pelas palavras Totus tuus ego sum («Sou todo teu»).
Mas este dom de Maria vem sempre de Jesus e conduz sempre a Jesus. E o sentido do pedido Praebe mihi cor tuum, Maria («concede-me o teu coração, ó Maria»). Não se trata principalmente de amar Maria, mas antes de amar Jesus com o coração de Maria. A verdadeira devoção a Maria é cristocêntrica. O discípulo que recebe do próprio Jesus o dom de Maria mediante a doação total de si mesmo, entra por meio dela no mistério da Aliança, na profundidade do intercâmbio admirável entre Deus e o homem em Cristo Jesus. «Deus fez-se homem para que o homem se tornasse Deus», diziam os Padres da Igreja. O Filho de Deus desceu do Céu e encarnou-se por obra do Espírito Santo no seio virginal de Maria, para nos elevar com ele ao seio do Pai. Maria ocupa o mesmo lugar no movimento «descendente» da encarnação e no movimento «ascendente» da nossa divinização. Como a Suma teológica de São Tomás de Aquino, também o Tratado de Montfort é totalmente articulado segundo esta dinâmica de exitus et reditus, ou seja, de ida e volta entre Deus e o homem em Jesus Cristo.
A «devoção perfeita a Maria» ensinada por São Luís Maria consiste essencialmente na doação total de si expressa no Totus tuus, integrando todas as boas práticas de devoção, especialmente o rosário. Mas mais profundamente é «prática interior», vida interior, um caminho de vida espiritual profunda que deve levar à santidade. Não há dúvida que João Paulo II viveu esta espiritualidade mariana no nível mais alto da união transformadora com Cristo. O pedido Praebe mihi cor tuum, o Maria foi satisfeito. O próprio Luís Maria, que tem a experiência maravilhosa desta «identificação mística com Maria» espera que a sua doutrina dê muitos frutos nos séculos sucessivos da Igreja.
Ao apresentar os «efeitos maravilhosos» (Tratado da verdadeira devoção à santa Virgem, 213-225) desta «perfeita devoção», Luís Maria mostra-nos corno a pessoa que vive plenamente o Totus tuus caminha com Maria pela estrada da humildade evangélica, que é via de amor, de fé e de esperança. No final da sua Carta aos religiosos e religiosas das famílias monfortinas, João Paulo II sintetiza este ensinamento do Tratado sempre à luz da Lumen gentium. A santidade à qual todos são chamados mais não é do que a perfeição da caridade. Nesta vida sobre a terra, a humildade é a maior característica da caridade. «É próprio do amor submeter-se», escreveu Teresa de Lisieux no início da sua História de uma alma. É o mesmo amor de Deus que em Jesus se faz pequeno e pobre do presépio até à cruz. E é o significado profundo da «escravidão do amor».
O ponto final da Lumen gentium era a contemplação de «Maria, sinal de esperança certa e de conforto para o Povo de Deus peregrino» (n. 68-69). Sob esta luz termina também a Carta à família monfortina de João Paulo II, citando as últimas linhas da Lumen gentium e resumindo a doutrina de Montfort sobre a esperança vivida com Maria, defendendo-o sobretudo contra a acusação injusta de «milenarismo». E recorda-se como, na antífona da Salve Rainha, a Igreja chama a mãe de Deus «nossa Esperança».
Em todas as dificuldades da vida sacerdotal, Maria é e será sempre a âncora da esperança, uma esperança certa para o futuro da Igreja e para a salvação do mundo. Assim também o Papa Bento XVI, que quis fortemente este Ano sacerdotal, apresentou Maria no final da sua encíclica Spe salvi como a «Estrela da Esperança» (cf. nn. 49-50).

Nenhum comentário:

Postar um comentário