Por Margarida Hulshof
“Não pode ter Deus por Pai, quem não tem a Igreja por Mãe”. (São Cipriano de Cartago)
Participei de um curso sobre eclesiologia, onde o palestrante começou dizendo: “Estamos acostumados a ouvir dizer que Jesus morreu para nos salvar. Acho issomuito pouco... Na verdade, não é nada disso: Jesus veio ao mundo para nos ensinar a maneira correta de viver, e foi morto porque incomodou aos poderosos.”
Sei que essa é uma visão comum hoje em dia, mas confesso que ela me parece, no mínimo, estranha. De acordo com ela, poderíamos então concluir que a morte de Jesus não fazia parte dos planos de Deus. Teria sido um acidente imprevisto, que por acaso acabou sendo útil à “causa” do Reino, devido à repercussão que teve.
Não que esse não seja um ponto de vista válido. Jesus incomodou mesmo aos poderosos, que por esse motivo o mataram. Essa foi a razão exterior, a causa aparente, a forma como esses mesmos poderosos compreenderam o acontecimento. Foi a estreita porção da realidade que seus endurecidos corações conseguiram captar...
Trata-se, pois, de uma visão que não deixa de ser verdadeira, mas é certamente limitada, parcial. Está longe de esgotar o profundo significado do mistério da Encarnação e da Redenção. É a visão “terrena”, materialmente evidente, verificável por qualquer observador, ainda que estranho ao contexto. Ou seja: para constatar isso, não é preciso ter fé... assim como, para vivenciar isso, Jesus não precisaria ser Deus. Essa, sim, eu considero uma visão muito pequena e pobre do sublime Mistério da Salvação de que a Igreja é porta-voz.
Acontece que Jesus nos convidou a ir além... Ele revelou claramente a sua identidade divina e não deixou de sublinhar a dimensão transcendente da sua missão redentora. Partilhou conosco os segredos do Pai, ensinando-nos o caminho para poder, um dia, ocupar as moradas que, com seu sacrifício, ele nos preparou junto de si, em seu Reino Eterno. Enviou-nos o Espírito Santo para que pudéssemos compreender e percorrer esse caminho que ultrapassa o âmbito terreno e se direciona para a eternidade, à qual somos chamados pelo amor infinito de um Deus que nos criou à sua imagem e semelhança e que, se por sua vez quis assumir a nossa imagem, não foi para ficar no nosso nível, mas para nos elevar até o seu. O estágio “carnal” de Jesus foi temporário e mesmo bastante breve, para nos mostrar que, também para nós, a vida terrena é apenas passagem, é preparação, é um meio e não um fim. Ele veio para nos abrir a porta da verdadeira vida...
É verdade que Deus não “desejou” a morte de seu Filho, porque o mal nunca é vontade de Deus. Qualquer sofrimento é sempre conseqüência do pecado, e o pecado é sempre iniciativa humana. Mas o sacrifício livremente assumido e voluntariamente oferecido como dom de amor, não é um mal... Se é verdade que Deus não “planejou” o pecado que matou Jesus, por outro lado ele “planejou”, sim, o dom de amor pelo qual nos libertou desse pecado, entregando seu próprio Filho em troca de nossa dívida.
Jesus assumiu livremente sobre si as conseqüências dos nossos pecados, entregando sua vida para nos resgatar da morte. Como ele mesmo disse, foiexatamente para isso que ele veio a este mundo... (Jo 12, 27).
Certamente, a causa da morte de Jesus foram os pecados humanos. Mas ele não é simplesmente a vítima, é também o ofertante do sacrifício. Não faz sentido dizer que a morte de Jesus foi algo alheio à vontade de Deus, quando o próprio Jesus afirmou, várias vezes, coisas como: “Ninguém me tira a vida, mas eu a dou livremente. Tenho o poder de entregá-la e o de retomá-la; esse é o mandamento que recebi de meu Pai.” (Jo 10, 18); “O Filho do Homem veio para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.” (Mt 20, 28); “Deus enviou seu filho ao mundo não para julgá-lo, mas para que o mundo seja salvo por ele.” (Jo 3, 17); “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos.” (Jo 15, 13); “Pai, faça-se a tua vontade...”(Mt 26, 39); “É chegada a hora em que o príncipe deste mundo será lançado fora...” (Jo 12, 31); “Este é o sangue da Aliança, que será derramado por vós e por todos, para a remissão dos pecados” (Mt 26, 28), e muitos outros exemplos semelhantes. João Batista, recordando o rito judaico do sacrifício de expiação pelos pecados, e comparando Jesus com a vítima imolada nesse rito, já profetizava: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo...” (Jo 1, 29).
Para quem tem fé, portanto, não pode haver dúvida de que o sacrifício de Jesus foi,em primeiro lugar, uma livre iniciativa do amor misericordioso de Deus, um presente gratuito por ele oferecido para nossa salvação. Espanta-me que alguém possa considerar “muito pouco” esse dom inestimável da Salvação, dando mais importância à capacidade de enfrentar os poderosos na defesa de um ideal humanitário (coisa que qualquer pessoa pode fazer), do que ao amor gratuito e inigualável de um Deus que se entrega em resgate por nós, pecadores, não apenas para nos libertar de dificuldades terrenas, mas principalmente para nos garantir uma vida muito mais preciosa, que somente ele nos pode dar.
Há quem diga que considerar a cruz como algo meritório, como fonte de redenção, é atitude “imperialista”, destinada a induzir as pessoas a aceitar passivamente a “tirania do sistema”, ao invés de lutar por seus direitos. Como se o fato de buscar a vida eterna impedisse alguém de ser feliz na terra, ou como se olhar para o céu nos tornasse menos humanos... Como se a oferta de nossa vida, em união com a oferta de Jesus, não fosse justamente a maior prova de amor que podemos dar a nossos irmãos!
Assim como tendem a valorizar mais o dom dos pães e dos peixes do que o da vida eterna (atitude censurada por Jesus em Jo 6, 26-27), essas pessoas também costumam olhar da mesma forma para a Igreja, destacando apenas a sua missão terrena. Esquecendo-se de que, na Igreja, a autoridade vem de Deus e significa serviço ao invés de “poder” no sentido profano, gostam de criticar a hierarquia como se fosse uma forma de “opressão” e de ressaltar as infidelidades, as contradições, as tentações e as falhas no governo da Igreja, ao invés de valorizar a ação da Graça ou os abundantes frutos de fé, de sabedoria e de santidade autênticas produzidos pela mesma Igreja (e não apesar dela) em todos os tempos. Os santos e mártires são lembrados apenas como outras tantas vítimas dos poderosos, que podem até ter oferecido livremente suas vidas pela causa do Reino, mas um “reino” visto como meramente terreno, onde a fraternidade e a justiça são buscadas como meta, mais do que como caminho para a vida eterna. Poucos se lembram de que os santos, em qualquer tempo, têm sempre os olhos voltados para a eternidade, e que, a exemplo de Cristo, oferecem suas vidas a Deus pela salvação dos pecadores, sendo essa a motivação que os move a aliviar os males imediatos de seus irmãos sofredores. Só é capaz de amar verdadeiramente quem tem o céu como referência...
Além disso, todos esses santos nutriam um profundo respeito pela Igreja, que não viam como madrasta, mas como verdadeira mãe e mestra. Mesmo os grandes reformadores, como São Francisco de Assis, não se consideravam como tais. Não pretenderam nunca “bater de frente”, julgar ou criticar, mas apenas fizeram a sua parte, cumprindo com fidelidade a sua missão na edificação da mesma Igreja, pela qual se sabiam também responsáveis.
Os “revolucionários” parecem julgar desnecessário lembrar que a Igreja não é obra apenas humana, mas, principalmente, divina. Que o Espírito Santo está no comando, guiando a Igreja ao longo da história, apesar da fraqueza dos instrumentos escolhidos. E que, se nem sempre os caminhos e os momentos de Deus coincidem com os nossos, isso não significa que ele esteja ausente, mas revela, antes, que nossa limitada razão é insuficiente para compreender os desígnios de sua sabedoria. As pedras com que tantas vezes nos ferimos uns aos outros não são obstáculo ao plano de Deus; ao contrário, são os tijolos com os quais Deus está construindo um Reino maior do que aquele idealizado por nossos sonhos meramente terrenos.
Não que Deus não se importe com os nossos sonhos ou com nossas necessidades temporais. Ao contrário. A promoção da dignidade humana neste mundo é parte importante da construção do Reino, mas o Evangelho não nos autoriza a vê-la como um fim em si mesma. Jesus deixa claro que ela é caminho, instrumento, degrau que nos conduzirá mais além. Não fomos criados para permanecer, nem para nos contentar com este mundo (Rm 12, 2), embora ele seja uma etapa importante e necessária em nossa vida, a “ferramenta de trabalho” que nos é dada para conquistar o outro. Se alguns irmãos são beneficiados, é sempre porque outros se despojaram de seu supérfluo em vista de bens superiores... Não existe justiça verdadeira sem essa compreensão prévia sobre os valores perenes e sobre o amor que se traduz em dom.
A missão da Igreja vai muito além de construir um mundo “ideal” aqui na terra, embora essa construção deva ser buscada e aconteça, de fato, quando cultivamos os valores que nos conduzirão à Vida Eterna. Embora alguns achem que esses “valores eternos” produzem alienação e impedem a justiça, eu estou convencida de que é o contrário que acontece, ou seja: os próprios resultados temporais têm maiores chances de ser alcançados quando colocamos além deles o objetivo de nossos esforços, quando vemos nesses mesmos esforços um sentido que ultrapassa o seu fruto imediato e que não depende necessariamente dele, já que somos guiados e motivados por uma Vontade que ultrapassa a nossa. O reino de fraternidade, justiça e paz que desejamos só acontece quando é visto como conseqüência, não como objetivo: “Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua Justiça, e tudo o mais vos será dado em acréscimo”... (Mt 6, 33).
Quando assim agimos, tornamo-nos capazes de avaliar com olhos menos críticos a caminhada da Igreja, e de ver nela a Noiva de Cristo, a Esposa sem mancha que o próprio Deus purificou.
Todas as pessoas têm qualidades e defeitos. Quem olha apenas as qualidades, ou apenas os defeitos, não poderá dizer que conhece realmente uma pessoa. Mas é certo que, se procurarmos incentivar as qualidades, mais do que salientar os defeitos, estaremos ajudando essa pessoa a crescer. E se, ao contrário, só colocarmos em relevo os defeitos, isso não a ajudará a tornar-se melhor...
Quando amamos alguém, geralmente concentramos o olhar em suas qualidades. É uma tendência que faz parte da própria natureza do amor. Alguns dizem, por esse motivo, que “o amor é cego”, mas há quem sugira uma interpretação mais otimista para essa atitude, como o convertido André Frossard, que escreveu:
“Quem disse que o amor é cego? Somente ele enxerga bem, pois descobre belezas onde outros nada vêem. Um olhar de amor é sempre um olhar de grata surpresa” (trecho do livro Deus existe, eu o encontrei).
Concentrar-se nas qualidades não significa ignorar os defeitos, mas sim, olhar para eles de uma forma construtiva, buscando compreender suas causas e despertar as potencialidades escondidas por trás deles. É acreditar sempre nas possibilidades latentes, ajudando o ser amado a confiar em si mesmo, e motivando-o a investir nessa fé. É assim o amor dos pais pelos filhos. É assim o amor de Deus por nós...
O amor filial costuma ser ainda mais devotado. Não há nada mais comovente do que o olhar de total confiança, de verdadeira adoração que uma criança dirige à sua mãe, por mais imperfeita e fraca que esta seja. Mãe é mãe, e isso diz tudo...
Esse é, em minha opinião, o olhar que deveríamos dirigir à nossa Mãe-Igreja [...].
Tal amor incondicional nunca fará mal a mãe alguma, e pode, além disso, ser fonte de redenção para uma mãe machucada pela vida, se for o caso, assim como o amor de Deus foi fonte de redenção para nós.
Hoje, porém, parece que o amor filial saiu de moda, ao menos em relação à Igreja, assim como à mãe-Pátria. Filhos ingratos se comprazem em proclamar de cima dos telhados, quase com orgulho, os defeitos (reais ou presumidos) daquela que lhes deu a vida, esquecendo-se de valorizar suas qualidades.
Acredito que não é por falta de amor que assim agem, nem por má intenção, mas sim por defender um jeito diferente de amar. Em vez da submissão que nasce da confiança, preferem o questionamento, o relativismo, a subjetividade. Querem uma Igreja e mesmo um Deus “fabricados” à imagem de sua razão, ao invés de aceitar a condição de criaturas... Como Adão e Eva (ou como o Filho Pródigo), já não acreditam que a submissão possa ser o melhor caminho para a felicidade, e preferem tomar nas mãos as rédeas da própria vida, descobrir por si mesmos o sentido da existência.
Eu, porém, reivindico o direito de amar a minha Igreja do jeito que aprendi, e de acreditar nela. Reivindico o direito de expressar esse amor, e de explicar seus motivos, como faço neste livro. Uma visão centrada nas qualidades não é uma visão falsa, pois as qualidades são tão reais quanto os defeitos. Trata-se apenas de escolher o melhor ângulo... E por que escolher voluntariamente o pior, quando temos outra opção?
Se existe na Igreja um lado humano, frágil e pecador, nem por isso é menos verdade que Deus não se envergonha de servir-se desses “vasos de barro” para transportar, através dos tempos, o tesouro da sua Palavra, do seu Amor, da sua Salvação. Apesar da fragilidade dos vasos, o Tesouro tem sido preservado... E penso que mais vale admirar, com respeito e reverência, esse milagre da Graça que opera apesar de nós, do que, à força de concentrar o olhar nos vasos, acabar esquecendo a procedência (e a finalidade) do tesouro...
Enfatizar a santidade ou a dimensão transcendente da Igreja não é trair a sua vocação humana, mas é, ao contrário, compreender essa mesma vocação na integridade de sua grandeza. Assim como a posição vertical não desmerece o homem em relação aos animais irracionais, mas expressa, justamente, a sua especial dignidade...
Margarida Hulshof Colabora com artigos sobre doutrina e espiritualidade para diversos periódicos católicos, além de trabalhar em atividades pastorais da Igreja. Vive com o marido e os cinco filhos em Holambra, SP. | |
Fonte: HULSHOF, M. “A Noiva do Cordeiro - Questões sobre a Igreja, vol. 1”, O Lutador, 2007. |
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