domingo, 12 de fevereiro de 2012

A Eclesiologia da Lumen Gentium por Cardeal Joseph Ratzinger

Por Joseph Ratzinger

Durante a preparação para o Concílio Vaticano II e também durante o próprio Concílio, o Cardeal Frings muitas vezes me contou um pequeno episódio que evidentemente o tocara profundamente. O Papa João XXIII não havia de sua parte estabelecido nenhum tema determinado para o Concílio, mas convidara os Bispos do mundo inteiro a propor as suas prioridades, para que das experiências vivas da Igreja universal surgisse a temática de que o Concílio deveria ocupar-se. Também na Conferência Episcopal Alemã se discutiu sobre quais temas deveriam ser propostos para a reunião dos Bispos. Não só na Alemanha, mas praticamente em toda a Igreja católica se considerava que o tema deveria ser a Igreja: o Concílio Vaticano I interrompido antes da hora em razão da guerra franco-alemã não pudera levar a termo a sua síntese eclesiológica, mas deixara um capítulo isolado de eclesiologia. Retomar os fila de então e assim buscar uma visão global da Igreja parecia ser a tarefa urgente do iminente Concílio Vaticano II. Isso decorria também do clima cultural da época: o fim da primeira guerra mundial trouxera consigo uma profunda reviravolta teológica. A teologia liberal orientada de modo completamente individualista se eclipsara como por si mesma, se despertara uma nova sensibilidade para a Igreja. Não só Romano Guardini falava de redespertar da Igreja nas almas; o bispo evangélico Otto Dibelius cunhava a fórmula de "século da Igreja", e Karl Barth dava à sua dogmática fundada sobre as tradições reformadas o título programático de "Kirchliche Dogmatik" (Dogmática eclesial): a dogmática pressupõe a Igreja, como explicava ele; sem Igreja, ela não existe.


Entre os membros da Conferência Episcopal Alemã, portanto, prevalecia amplamente um consenso sobre o fato de que a Igreja devesse ser o tema. O velho bispo Buchberger de Regensburg, que, como ideador do Lexikon für Theologie und Kirche em dez volumes, hoje na sua terceira edição, conquistara estima e renome muito além da sua diocese, pediu a palavra - assim me contava o Arcebispo de Colônia - e disse: caros irmãos, no Concílio deveis sobretudo falar de Deus. Este é o tema mais importante. Os Bispos ficaram impressionados; não podiam furtar-se à gravidade destas palavras. Naturalmente, não podiam decidir-se a propor simplesmente o tema de Deus. Mas uma inquietação interior permaneceu pelo menos no Cardeal Frings, que se perguntava continuamente como poderíamos satisfazer a este imperativo. Este episódio voltou-me à mente quando li o texto da conferência com a qual Johann Baptist Metz se despediu em 1993 da sua cátedra de Münster. Desse importante discurso gostaria de citar pelo menos algumas frases significativas. Diz Metz: "A crise que atingiu o cristianismo europeu não é mais primariamente ou pelo menos exclusivamente uma crise eclesial... A crise é mais profunda: de fato, ela não tem as suas raízes só na situação da própria Igreja: a crise tornou-se uma crise de Deus". "Poder-se-ia dizer, esquematicamente: religião, sim - Deus não, onde este não, por sua vez, não é entendido no sentido categórico dos grandes ateísmos. Não existem mais grandes ateísmos. O ateísmo de hoje. ns realidade, já pode voltar a falar de Deus - distraída ou tranquilamente -, sem pretendê-lo realmente...". "Também a Igreja tem sua concepção da imunização contra as crises de Deus. Ela hoje não fala mais - como por exemplo ainda no Concílio Vaticano II - de Deus, mas apenas - como por exemplo no último Concílio - de Deus anunciado por meio da Igreja. A crise de Deus é codificada eclesiologicamente". Palavras deste tipo na boca do criador da teologia política devem tornar atentos. Elas nos recordam sobretudo justamente que o Concílio Vaticano II não foi só um concílio eclesiológico, mas antes e sobretudo ele falou de Deus e isto não só dentro da cristandade, mas voltado para o mundo - daquele Deus que é o Deus de todos, que a todos salva e a todos é acessível. Será que porventura o Vaticano II, como Metz parece dizer, recolheu só metade da herança do Concílio anterior? Um texto dedicado à eclesiologia do Concílio deve evidentemente colocar-se esta pergunta.
Gostaria de antecipar imediatamente a minha tese de fundo: o Vaticano II queria claramente inserir e subordinar o discurso sobre a Igreja ao discurso sobre Deus, queria propor uma eclesiologia no sentido propriamente teo-lógico, mas a recepção do Concílio até o momento desdenhou esta característica qualificante em favor de afirmações eclesiológicas isoladas, lançou-se sobre palavras isoladas de fácil apelo e assim ficou para trás no que se refere às grandes perspectivas dos Padres conciliares. Algo de análogo se pode, aliás, dizer a propósito do primeiro texto que o Vaticano II produziu - a Constituição sobre a Sagrada Liturgia. O fato de que ela se situasse no início tinha em princípio motivos pragmáticos. Mas retrospectivamente se deve dizer que na arquitetura do Concílio isto tem um sentido preciso: no início está a adoração. E portanto Deus. Este início corresponde à palavra da Regra beneditina: Operi Dei nihil praeponatur. A Constituição sobre a Igreja, que se segue como o segundo texto do Concílio, deveria ser considerada internamente vinculada a ela. A Igreja deixa-se guiar pela oração, pela missão de glorificar a Deus. A eclesiologia, por natureza, tem a ver com a liturgia. E portanto também é lógico que a terceira Constituição fale da palavra de Deus, que convoca a Igreja e a renova a todo momento. A quarta Constituição mostra como a glorificação de Deus é proposta na vida ativa, como a luz recebida de Deus é levada ao mundo e só assim se torna totalmente a glorificação de Deus. Na história do pós-concílio, certamente a Constituição sobre a liturgia não foi mais compreendida a partir deste primado fundamental da adoração, mas antes como um livro de receitas sobre o que podemos fazer com a liturgia. Nesse meio tempo, parece ter fugido aos criadores de liturgia, ocupados que estão de modo cada vez mais premente em refletir sobre como se possa configurar a liturgia de modo cada vez mais atraente, comunicativo, nela envolvendo ativamente cada vez mais gente, que a liturgia na realidade é "feita" para Deus e não para nós mesmos. Quanto mais, porém, a fizermos para nós mesmos, tanto menos atraente ela é, porque todos notam claramente que o essencial é cada vez mais perdido. No que concerne agora à eclesiologia de "Lumen gentium", permaneceram sobretudo na consciência algumas palavras chaves: a idéia de Povo de Deus, a colegialidade dos Bispos como revalorização do ministério do Bispo em relação ao primado do Papa, a revalorização das Igrejas locais em relação à Igreja universal, a abertura ecumênica do conceito de Igreja e a abertura às outras religiões; enfim, a questão do estatuto específico da Igreja católica, que se exprime na fórmula segundo a qual a Igreja una, santa, católica e apostólica, de que fala o Credo, "subsistit in Ecclesia catholica": deixo esta famosa fórmula aqui inicialmente não traduzida, porque ela - como era previsto - recebeu as explicações mais contraditórias – da idéia, de que aqui se exprima a singularidade da Igreja católica unida ao Papa até a idéia de que aqui se tenha alcançado uma equiparação com todas as outras Igrejas cristãs e a Igreja católica tenha abandonado a sua pretensão de especificidade.
Numa primeira fase da recepção do Concílio predomina, conjuntamente com o tema da Colegialidade, o conceito de povo de Deus, que, logo compreendido totalmente a partir do uso lingüístico político geral da palavra povo, no âmbito da teologia da libertação foi compreendido com o uso da concepção marxista do povo como
contraposição às classes dominantes e mais em geral e ainda mais amplamente no sentido de soberania do povo, que agora finalmente deveria ser aplicada também à Igreja. Isso, por sua vez deu oportunidade a amplos debates sobre as estruturas, nos quais foi interpretado, conforme a situação, de modo mais ocidental como "democratização" ou mais no sentido das "Democracias populares" orientais. Lentamente, este "fogo de artifício de palavras" (N. Lohfink) ao redor do conceito de povo de Deus foi-se apagando, por um lado e principalmente porque estes jogos de poder se esvaziaram por si mesmos e tiveram de dar lugar ao trabalho ordinário nos conselhos paroquiais, mas por outro lado também porque um sólido trabalho teológico mostrou de modo incontrovertível a insustentabilidade de tais politizações de um conceito de per si proveniente de um âmbito totalmente diferente. Como resultado de análises exegéticas precisas, o exegeta de Bochum, Werner Berg, p. ex., afirma: "Apesar do pequeno número de trechos que contêm a expressão "povo de Deus" - deste ponto de vista, "povo de Deus" é um conceito bíblico um tanto raro -, pode-se, porém, notar algo comum neles: a expressão "povo de Deus" exprime oparentesco com Deus, a relação com Deus, o vínculo entre Deus e aquele que é designado como "povo de Deus", portanto uma "direção vertical". A expressão presta-se menos para descrever a estrutura hierárquica dessa comunidade, sobretudo se o "povo de Deus" for descrito em contraposição aos ministros... A partir do seu significado bíblico, a expressão tampouco se presta a ser um grito de protesto contra os ministros: "Nós somos o povo de Deus"".

O professor de teologia fundamental de Paderborn, Josef Meyer zu Schlochtern, conclui a resenha sobre a discussão ao redor do conceito de povo de Deus com a observação de que a Constituição sobre a Igreja do Vaticano II termina de tal modo o capítulo correspondente que "designa a estrutura trinitária como fundamento da última determinação da Igreja...". Assim aa discussão é reconduzida ao ponto essencial: a Igreja não existe por si mesma, mas deveria ser o instrumento de Deus, para reunir os homens a Ele, para preparar o momento em que "Deus será tudo em tudo" (1 Cor 15, 28). Justamente o conceito de Deus havia sido deixado de lado no "fogo de artifício" ao redor desta expressão e assim fora privado do seu significado. De fato, uma Igreja que existe só por si mesma é supérflua. E as pessoas logo notam isso. A crise da Igreja, como ela se reflete no conceito de povo de Deus, é "crise de Deus"; ela decorre do abandono do essencial. O que resta é hoje só uma luta pelo poder. Isso já existe bastante no mundo, para isso não se precisa da Igreja. Pode-se certamente dizer que aproximadamente a partir do Sínodo extraordinário de 1985, que devia tentar uma espécie de balanço de vinte anos de pós-concilio, uma nova tentativa tem-se difundido, que consiste em concentrar o conjunto da eclesiologia conciliar num conceito base: a eclesiologia de comunhão. Acolhi com alegria este novo recentramento da eclesiologia e também procurei, dentro das minhas capacidades, prepará-lo. Deve-se, porém, em primeiro lugar reconhecer que a palavra "communio" no Concílio não tem uma posição central. Entretanto, compreendida corretamente, ela pode servir de síntese para os elementos essenciais da eclesiologia conciliar. Todos os elementos essenciais do conceito cristão de "communio" encontram-se reunidos no famoso trecho de 1 Jo 1,3, que pode ser considerado o critério de referência para toda correta compreensão cristã da "communio": "O que vimos e ouvimos, anunciamo-lo também a vós, para que também vós estejais em comunhão conosco. A nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo. Estas coisas vos escrevemos, para que a nossa alegria seja perfeita". Surge aqui em primeiro plano o ponto de partida da "communio": o encontro com o Filho de Deus, Jesus Cristo, que no anúncio da Igreja vem aos homens. Nasce assim a comunihãn dos homens entre si, que por sua vez se fundamenta na comunhão com o Deus uno e trino. À comunhão com Deus se tem acesso através daquela realização da comunhão de Deus com o homem que é Cristo em pessoa; o encontro com Cristo cria comunhão com Ele mesmo e portanto com o Pai no Espírito Santo; e a partir daí une os homens entre si. Tudo isto tem por fim a alegria plena: a Igreja traz em si uma dinâmica escatológica. Na expressão alegria plena se nota a referência aos discursos de despedida de Jesus, portanto ao mistério pascal e ao retorno do Senhor nas aparições pascais, que tende ao seu pleno retorno no novo mundo: "Vós vos entristecereis, mas a vossa tristeza se transformará em alegria... ver-vos-ei de novo e o vosso coração se alegrará... Pedi e recebereis, para que a vossa alegria seja plena" (Jo 16, 20.22.24). Se confrontarmos a última frase citada com Lc 11, 13 – o convite à oração em Lucas -, fica claro que "alegria" e "Espírito Santo" se equivalem e que por trás da palavra alegria se esconde em 1 Jo 1, 3 o Espírito Santo aqui não expressamente mencionado. A palavra "communio" tem, pois, a partir deste âmbito bíblico, um caráter teológico, cristológico, histórico-salvífico e eclesiológico. Traz pois consigo também a dimensão sacramental, que em Paulo se mostra de modo totalmente explícito: "O cálice da bênção que abençoamos não é porventura comunhão com o sangue de Cristo? E o pão que partimos não é porventura comunhão com o corpo de Cristo? Já que há um só pão, nós, embora sendo muitos, somos um só corpo..." (1 Cor 10, 16s). A eclesiologia de comunhão é desde seu íntimo uma eclesiologia eucaristica. Ela se coloca assim bem perto da eclesiologia eucarística, que teólogos ortodoxos desenvolveram de modo convincente no nosso século. Nela, a eclesiologia torna-se mais concreta e permanece, porém, ao mesmo tempo totalmente espiritual, trascendente e escatológica. Na Eucaristia, Cristo, presente no pão e no vinho e dando-se sempre novamente, edifica a Igreja como seu corpo e por meio do seu corpo de ressurreição nos une ao Deus uno e trino e entre nós. A Eucaristia é celebrada em diferentes lugares, porém é ao mesmo tempo sempre universal, porque existe um só Cristo e um só corpo de Cristo. A Eucaristia inclui o serviço sacerdotal de "repraesentatioChristi" e portanto a rede do serviço, a síntese de unità e multiplicidade, que já se evidencia na palavra "Communio". Pode-se assim sem dúvida dizer que este conceito traz em si uma síntese eclesiológica que une o discurso da Igreja ao discurso de Deus e à vida de Deus e com Deus, uma síntese que retoma todas as intenções essenciais da eclesiologia do Vaticano II e as une entre si do modo correto.
Por todos estes motivos sentia-me grato e contente, quando o Sínodo de 1985 trouxe de volta ao centro da reflexão o conceito de "communio". Mas os anos seguintes mostraram que nenhuma palavra é à prova de mal-entendidos, nem mesmo a melhor e mais profunda. Na medida em que "communio" se tornou um slogan fácil, ela foi nivelada e deturpada. Como no caso do conceito de povo de Deus, também aqui se notou uma progressiva horizontalização, o abandono do conceito de Deus. A eclesiologia de comunhão começou a reduzir-se à temática da relação entre Igreja local e Igreja universal, que por sua vez tornou a cair cada vez mais no problema da divisão de competências entre uma e outra. Naturalmente, difundiu-se de novo o tema igualitarista, segundo o qual na "communio" só poderia haver uma igualdade plena. Chegou-se assim de novo exatamente à discussão dos discípulos sobre quem fosse o maior, que evidentemente em nenhuma geração pretende extinguir-se. Marcos refere-se a ela com maior insistênciaa. No caminho para Jerusalém Jesus falara pela terceira vez aos discípulos da sua próxima paixão. Chegados a Cafarnaum, pergunta a eles sobre o que tinham discutido ao longo do caminho. "Mas eles se calavam", pois haviam discutido sobre qual deles fosse o maior - uma espécie de discussão sobre o primado (Mc 9, 33-37). Não é assim também hoje? Enquanto o Senhor vacaminha para a sua paixão, enquanto a Igreja e nela Ele próprio sofre, nós nos detemos no nosso tema preferido, na discussão sobre os nossos direitos de precedência. E se Ele viesse entre nós e nos perguntasse sobre o que falamos, quanto teríamos de enrubecer e calar. Isto não quer dizer que na Igreja não se deva também discutir sobre a ordenação correta e sobre a atribuição das responsabilidades. E certamente sempre haverá desequilíbrios que exigem correções. Naturalmente pode ocorrer um centralismo romano exorbitante, que, como tal, deve depois ser evidenciado e purificado. Mas tais questões não nos podem distrair da verdadeira tarefa da Igreja: a Igreja não deve falar primariamente de si mesma, mas de Deus, e só para que isto aconteça de modo puro há então também críticas intraeclesiais, para as quais a correlação do discurso sobre Deus e sobre o serviço comum deve dar a direção. Em suma, não por acaso retorna na tradição evangélica em diversos contextos a palavra de Jesus segundo a qual o último será o primeiro e o primeiro, o último - como um espelho, que diz respeito sempre a todos. Diante da redução, que com relação ao conceito de "communio" se verificou nos anos que se seguiram a 1985, a Congregação para a Doutrina da Fé considerou oportuno preparar uma "Carta aos Bispos da Igreja católica sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão", que foi publicada com a data de 28 de junho de 1992. Uma vez que hoje para os teólogos que prezam a o seu prestígio, parece Ter-se tornado um dever dar uma avaliação negativa aos documentos da Congregação para a Doutrina da Fé, sobre esse texto choveram as críticas, de que muito pouco conseguiu salvar-se. Foi sobretudo criticada a frase de que a Igreja universal seria no seu mistério essencial uma realidade que ontológica e temporalmente precede cada uma das Igrejas particulares. Isto no texto era brevemente fundamantado com a evocação do fato de que segundo os padres a Igreja una e única precede a criação e gera as Igrejas particulares (9). Os padres dão assim continuidade a uma teologia rabínica que concebera como preexistentes a Torá e Israel: a criação teria sido concebida para que nela houvesse um espaço para a vontade de Deus; esta vontade, porém, precisava de um povo que vivesse para a vontade de Deus e dela fizesse a luz do mundo. Uma vez que os padres estavam convictos da identidade última entre Igreja e Israel, eles não podiam ver na Igreja algo de casual aparecido de última hora, mas reconheciam nesta reunião dos povos sob a vontade de Deus a teleologia interna da criação. A partir da cristologia, a imagem se amplia e se aprofunda: a história - de novo em relação com o Antigo Testamento - é explicada como história de amor entre Deus e o homem. Deus encontra e prepara para Si a esposa do Filho, a única esposa, que é a única Igreja. A partir da palavra da Gênese, que homem e mulher serão "dois numa só carne" (Gn 2, 24), a imagem da esposa se funde com a idéia da Igreja como corpo de Cristo, metéfora que por sua vez deriva da liturgia eucarística. O único corpo de Cristo é preparado; Cristo e a Igreja serão "dois numa só carne", um corpo, e assim "Deus será tudo em tudo". Essa precedência ontológica da Igreja universal, da única Igreja e do único corpo, da única esposa, em relação às realizações empíricas concretas em cada uma das Igrejas particulares me parece tão evidente, que para mim é difícil compreender as objeções a ela. Na realidade, elas só me parecem possíveis se não se quer e não se consegue mais ver a grande Igreja ideada por Deus - talvez por desespero em razão da sua insuficiência terrena -; ela aparece então como uma quimera teológica, e permanece portanto só a imagem empírica das Igrejas na sua relação recíproca e na sua conflitualidade. Isto porém significa que a Igreja como tema teológico é excluída. Se agora só se pode ver a Igreja nas organizações humanas, então na realidade permanece só desolação. Mas então não se abandona só a eclesiologia dos padres, mas também a do Novo Testamento e a concepção de Israel do Antigo Testamento. No Novo Testamento, aliás, não é necessário aguardar as epístolas deutero-paulinas e o Apocalipse para encontrar a prioridade ontológica - reafirmada pela Congregação para a Doutrina da Fé - da Igreja universal em relação às Igrejas particulares. No coração das grandes Epístolas paulinas, na epístola aos Gálatas, o Apóstolo nos fala da Jerusalém celeste e não como de uma grandeza escatológica, mas como uma realidade que nos precede: "Essa Jerusalém é a nossa mãe" (Gal 4, 26). A este respeito, H. Schlier nota que para Paulo como para a tradição judaica em que se inspira, a Jerusalém do alto é o novo eón. Para o apóstolo, porém, este novo eón já está presente "na Igreja cristã. Esta é para ele a Jerusalém celeste nos seus filhos". Se a prioridade ontológica da única Igreja não pode ser negada seriamente, a questão acerca da precedência temporal, porém, já é sem dúvida mais difícil. A Carta da Congregação para a Doutrina da Fé remete aqui à imagem lucana do nascimento da Igreja em Pentecostes por obra do Espírito Santo. Não queremos discutir aqui a questão da historicidade dessa narrativa. O que conta é a afirmação teológica, que é o que importa a Lucas. A Congregação para a Doutrina da Fé chama a atenção para o fato de que a Igreja tem início na comunidade dos 120 reunida ao redor de Maria, sobretudo na renovada comunidade dos doze, que não são membros de uma Igreja local, mas são os apóstolos, que levarão o evangelho aos confins da terra. Para esclarecer mais isto podemos acrescentare que eles, em seu número de doze, são ao mesmo tempo o antigo e o novo Israel, o único Israel de Deus, que agora - como desde o início estava contido fundamentalmente no conceito de povo de Deus - se estende a todas as nações e funda em todos os povos o único povo de Deus. Esta referência é reforçada por outros dois elementos: a Igreja nessa hora do seu nascimento já fala em todas as línguas. Os padres da Igreja interpretaram corretamente essa narrativa do milagre das línguas como uma antecipação da Catholica - a Igreja desde o primeiro instante é orientada "kat'holon" - abarca todo o universo. A isso se correlaciona o fato de que Lucas descreva o grupo de ouvintes como peregrinos vindos da terra inteira, com base num quadro de doze povos, cujo significado é aludir à onicompreensividade do auditório; Lucas enriqueceu esse quadro helenístico dos povos com um décimo terceiro nome: os romanos, com o que sem dúvida queria ressaltar mais uma vez a idéia do Orbis. Não se traduz com toda exatidão o sentido do texto da Congregação para a Doutrina da Fé quando, a este respeito Walter Kasper diz que a comunidade originária de Jerusalém teria sido de fato Igreja universal e Igreja local ao mesmo tempo e em seguida continua: "Certamente isto representa uma elaboração lucana; de fato, do ponto de vista histórico, é de se presumir que houvesse desde o início mais comunidades, ao lado da comunidade de Jerusalém e também comunidades na Galiléia". Aqui não se trata da questão para nós insolúvel em última instância, de quando exatamente e onde pela primeira vez surgiram comunidades cristãs, mas do início interior da Igreja no tempo, que Lucas quer descrever e que ele, para além de qualquer observação empírica, reconduz à força do Espírito Santo. Mas sobretudo não se faz justiça à narratica lucana se se diz que a comunidade originária de Jerusalém "teria sido ao mesmo tempo Igreja universals e Igreja local. A realidade primeira na narrativa de São Lucas não é uma comunidade originária hierosolimitana, mas a realidade primeira é que nos doze o antigo Israel, que é único, torna-se o novo e que agora este único Israel de Deus, por meio do milagre das línguas, ainda antes de se tornar a representação de uma Igreja local hierosolimitana, se mostra como uma unidade que abarca todos os tempos e todos os lugares. Nos peregrinos presentes, que vêm de todos os povos, ela também envolve imediatamente todos os povos do mundo. Talvez não seja necessário supervalorizar a questão da precedência temporal da Igreja universal, que Lucas em sua narrativa propõe claramente. Permanece importante, porém, que a Igreja nos doze é gerada pelo único Espírito desde o começo para todos os povos e portanto também desde o primeiro instante é orientada a exprimir-se em todas as culturas e assim a ser o único povo de Deus: não é que uma comunidade local se amplie lentamente, mas o fermento está sempre orientado para o todo e portanto traz em si uma universalidade desde o primeiro instante.
A resistência contra as afirmações de precedência da Igreja universal em relaçao às igrejas particulares é teologicamente difícil de compreender ou mesmo incompreensível.

Só se torna compreensível a partir de uma suspeita que foi assim sinteticamente formulado: "A fórmula torna-se totalmente problemática se a única Igreja universal for tacitamente identificada com a Igreja romana, de facto com o Papa e a Cúria. Se isto ocorre, então a Carta da Congregação para a Doutrina da Fé não pode ser entendida como uma ajuda no esclarecimento da eclesiologia de comunhão, mas deve ser compreendida como o seu abandono e como a tentativa de uma restauração do centralismo romano". Neste texto, a identificação da Igreja universal com o Papa e a Cúria é primeiramente introduzida como hipótese, como perigo, mas depois parece de fato ser atribuída à Carta da Congregação para a Doutrina da Fé, que assim aparece como uma restauração teológica e portanto como afastamento do Concílio Vaticano II. Esse salto interpretativo surpreende, mas representa sem dúvida uma suspeita amplamente difundida; ela dá voz a uma acusação que se ouve um pouco em toda parte, e também exprime bem uma crescente incapacidade de representar-se sob a Igreja universal, sob a Igreja una, santa, católica algo de concreto. Como único elemento configurável restam o Papa e a Cúria, e se se dá a eles uma classificação alta demais do ponto de vista teológico, é compreensível que pessoas se sintam ameaçadas. Assim nos encontramos aqui muito concretamente, depois do que só aparentemente é um Excursus, diante da questão da interpretação do Concílio. A pergunta que agora nos colocamos é a seguinte: qual idéia de Igreja universal tem realmente o Concílio? Não se pode dizer em verdade que a Carta da Congregação para a Doutrina da Fé "identifique tacitamente a Igreja universal com a Igreja romana, de factocom o Papa e a Cúria". Essa tentação surge se anteriormente já se houvesse identificado a Igreja local de Jerusalém e a Igreja universal, ou seja, se se houver reduzido o conceito de Igreja às comunidades que aparecem empiricamente e a sua profundidade teológica tiver sido perdida de vista. É útil retornar com estas questões ao texto mesmo do Concílio. Imediatamente, a primeira frase da Constituição sobre a Igreja esclarece que o Concílio não considera a Igreja como uma realidade fechada em si mesma, mas a vê a partir de Cristo: "Cristo é a luz das nações, e este sagrado concílio, reunido no Espírito Santo, deseja ardentemente que a luz de Cristo, refletida na face da Igreja, ilumine a todos os homens... ". Sobre esse fundo reconhecemos a imagem presente na teologia dos padres, que vê na Igreja a lua, a qual não tem por si mesma luz própria, mas reenvia a luz do sol Cristo. A eclesiologia manifesta-se como dependente da cristologia, a ela ligada. Já’que, porém, ninguém pode falar corretamente de Cristo, do Filho, sem ao mesmo tempo falar do Pai e já que não se pode falar corretamente de Pai e Filho sem colocar-se na escuta do Espírito Santo, a visão cristológica da Igreja se amplia necessariamente numa eclesiologia trinitária (LG n. 2-4). O discurso sobre a Igreja é um discurso sobre Deus, e só assim está correto. Nesta ouverture trinitária, que oferece a chave para a correta leitura do texto inteiro, aprendemos o que é a Igreja una, santa a partir das e em todas as concretas realizações históricas, o que significa "Igreja universal". Isto mais tarde se esclarece quando sucessivamente é mostrado o dinamismo interior da Igreja rumo ao Reino de Deus. Justamente porque a Igreja deve ser compreendida teo-logicamente, ela autotranscende sempre a si mesma; ela é a reunião para o Reino de Deus, irrpução nele. São em seguida apresentadas brevemente as diversas imagens da Igreja, que representam todas elas a única Igreja, quer quando se fale da esposa, quer da casa de Deus, da sua familha, do templo, da cidade santa, da nossa mãe, da Jerusalém celeste ou do rebanho de Deus, etc. Ao final, isso se concretiza mais. Recebemos uma resposta muito prática à pergunta: o que é isto, esta única Igreja universal que precede ontológica e temporalmente as Igrejas locais? Onde está? Onde podemos vê-la agir? A Constituição responde falando-nos dos sacramentos. Há em primeiro lugar o batismo: ele é um evento trinitário, ou seja, totalmente teológico, muito mais que uma evento social ligado à Igreja local, como hoje infelizmente é muitas vezes desfigurado. O batismo não deriva da comunidade individual, mas nele se abre a nós a porta à única Igreja, ele é a presença da única Igreja e só pode manifestar-se a partir dela - da Jerusalém celeste, da nova mãe. Com relação a isto, o conhecido ecumenista Vinzenz Pfnür disse recentemente: o batismo é ser inserido "no único corpo de Cristo aberto para nós na cruz (cf Ef 2, 16), no qual... são batizados por meio do único Espírito (1 Cor 12, 13), o que é essencialmente mais do que o anúncio batismal em uso em muitos lugares: acolhemos na nossa comunidade...". No batismo, tornamo-nos membros desse único corpo, "o que não deve ser confundido com a pertença a uma Igreja local. Disso faz parte a única esposa e o único episcopado..., do qual com Cipriano se participa só na comunhão dos bispos". Nel batismo a Igreja universal precede continuamente a Igreja local e a constitui. A partir daí a Carta da Congregação para a Doutrina da Fé sobre a "communio" pode dizer que na Igreja não há estrangeiros: todos estão em toda parte em casa e não só como hóspedes. É sempre a única Igreja, a única e a mesma. Quem é batizado em Berlim, está na Igreja em Roma ou em Nova York ou em Kinshasa ou em Bangalore ou em qualquer outro lugar, tanto em sua casa como na Igreja em que foi batizado. Não deve registrar-se de novo, é a única Igreja. O batismo vem dela e dá à luz nela. Quem fala do batismo fala, trata por isso mesmo também da palavra de Deus, que para a Igreja inteira é só uma e continuamente a precede em todos os lugares, a convoca e a edifica. Esta palavra está acima da Igreja, e no entanto está nela, confiada a ela como sujeito vivo. A palavra de Deus precisa, para estar presente de modo eficaz na história, deste sujeito, mas este sujeito, por sua vez, não subsiste sem a força vivificante da palavra, que antes de tudo a torna sujeito. Quando falamos da palavra de Deus, entendemos também o Credo, que está no centro do evento batismal; ele é omodo como a Igreja acolhe a palavra e dela se apropria, palavra e resposta, por assim dizer, ao mesmo tempo. Também aqui a Igreja universal está presente, a única Igreja, de modo bastante concreto e aqui perceptível.
O texto conciliar passa do batismo à Eucaristia, na qual Cristo dá o seu corpo e lhes devolve assim seu corpo. Esse corpo é único, e assim novamente a Eucaristia para cada Igreja local é o lugar da inserção no único Cristo, o tornar-se uma só coisa de todos os que comungam na "communio" universal, que une céu e terra, vivos e mortos, passado, presente e futuro e abre para a eternidade. A Eucaristia não nasce da Igreja local e não termina nela. Ela manifesta continuamente que Cristo, de fora, através das nossas portas fechadas vem a nós; ela vem continuamente a nós a partir de fora, do total, único corpo de Cristo e nos conduz para dentro dele. Este "extra nos" do Sacramento revela-se também no ministério do bispo e do presbítero: o fato de a eucaristia precisar do sacramento do serviço sacerdotal tem o seu fundamento exatamente no fato de que a comunidade não pode oferecer-se ela própria a eucaristia; ela deve recebê-la a partir do Senhor por meio da mediação da única Igreja. A sucessão apostólica, que constitui o ministério sacerdotal, implica ao mesmo tempo tanto o aspecto sincrônico como o diacrônico do conceito de Igreja: o pertencer ao todo da história da fé a partir dos apóstolos e o estar em comunhão com todos aqueles que se deixam reunir pelo Senhor no seu corpo. A Constituição sobre a Igreja tratou notoriamente o ministério episcopal no terceiro capítulo e esclareceu o seu significado a partir do conceito fundamental do "collegium". Este conceito que aparece só de modo marginal na tradição serve para ilustrar a unidade interior do ministério episcopal. Ninguém é bispo individualmente, mas através da pertença a um corpo, a um colégio, que por sua vez representa a continuidade histórica do "collegium apostolorum". Neste sentido, o ministério episcopal deriva da única Igreja e introduz a ela. Justamenteo aqui se torna visível que não existe teologicamente nenhuma contraposição entre Igreja local e Igreja universal. O Bispo representa na Igreja local a única Igreja, e ele edifica a única Igreja, enquanto edifica a Igreja local e desperta os seus dons particulares para a utilidade de todo o corpo. O ministério do sucessor de Pedro é um caso particular do ministério episcopal e está ligado de modo particular com a responsabilidade para unidade da Igreja inteira. Mas esse ministério de Pedro e a sua responsabilidade não poderia sequer existir, se não existisse antes de tudo a Igreja universal. Mover-se-ia, de fato, no vazio e representaria uma pretensão absurda. Sem dúvida, a correlação correta entre episcopado e primado teve de ser continuamente redescoberta através mesmo de esforços e sofrimentos. Mas esta busca só é colocada de modo correto quando é considerada a partir do primado da missão específica da Igreja e a ele sempre orientada e subordinada: ou seja, a tarefa de levar Deus aos homens, os homens a Deus. O objetivo da Igreja é o Evangelho, e ao redor dele tudo nela deve girar.
Gostaria aqui de interromper a análise do conceito de "communio" e tomar mais uma vez posição pelo menos brevemente em relação ao ponto mais discutido de "Lumen gentium": o significado da já mencionada frase de "Lumen gentium" 8, segundo a qual a única Igreja de Cristo, que confessamos no Símbolo como a única, santa, católica e apostólica, "subsiste" na Igreja católica, que é guiada por Pedro e pelos bispos em comunhão com ele. A Congregação para a Doutrina da Fé viu-se obrigada em 1985 a tomar posição em relação a esse texto muito discutido em razão de um livro de Leonardo Boff, no qual o autor sustentava a tese de que a única Igreja de Cristo, como subsiste na Católico-romana, subsistiria também em outras Igrejas cristãs. É supérfluo dizer que sobre o pronunciamento da Congregação pela Doutrina da Fé choveram críticas pungentes, para depois ser deixado de lado. Na tentativa de refletir sobre o estado atual da recepção da eclesiologia conciliar, a questão da interpretação do "subsistit" é inevitável, e a este respeito o único pronunciamento oficial do Magistério depois do Concílio sobre esta palavra, ou seja, a citada Notificação, não pode ser negligenciado. À distância de 15 anos, aparece com mais clareza do que na época que não se tratava no caso de um único autor teológico, mas de uma visão da Igreja que circula com diversas variações e ainda hoje é muito atual. O esclarecimento de 1985 apresentou extensamente o contexto da tese de Boff já brevemente mencionada. Não é necessário aprofundarmo-nos mais nesses pormenores, porque nos interessa algo mais fundamental. A tese, cujo representante na época foi Boff, poder-se-ia caracterizar como relativismo eclesiológico. Ela encontra sua justificação na teoria de que o "Jesus histórico" por si só não teria pensado numa Igreja, e muito menos, portanto, a teria fundado. A Igreja como realidade histórica teria surgido só depois da ressurreição, no processo de perda de tensão escatológica, em razão das inevitáveis necessidades sociológicas da institucionalização, e inicialmente não teria sequer existido uma Igreja universal "católica", mas apenas diversas Igrejas locais, com diferentes teologias, diferentes ministérios, etc. Nenhuma Igreja institucional poderia, portanto, afirmar ser aquela única Igreja de Jesus Cristo querida pelo próprio Deus; todas as configurações institucionais nasceram, pois, de necessidades sociológicas e portanto, como tais, são todas elas construções humanas, que podem ou até mesmo devem modificar-se de novo radicalmente sob novas circunstâncias. Na sua qualidade teológica se diferenciam de modo muito secundário e portanto se poderia dizer que em todas ou pelo menos em muitas subsiste a "única Igreja de Cristo". A propósito desta hipótese surge naturalmente a pergunta de com que direito, numa tal perspectiva, se possa simplesmente falar de uma única Igreja de Cristo.
A tradição católica, porém, escolheu um outro ponto de partida: ela confia nos evangelistas, crê neles. Fica então evidente que Jesus, que anunciou o reino de Deus, para a sua realização reuniu ao seu redor alguns discípulos; Ele lhes deu não só a sua palavra como uma nova interpretação do Antigo Testamento, mas no sacramento da última ceia deu-lhes de presente um novo centro unificante, por meio do qual todos aqueles que se confessem cristãos, de um modo totalmente novo, se tornam uma só coisa com Ele - tanto que Paulo pôde designar esta comunhão como o ser um só corpo com Cristo, assim como a unidade de um só corpo no Espírito. Fica então evidente que a promessa do Espírito Santo não era um vago anúncio, mas apontava para a realidade de Pentecostes - o fato, pois, de que a Igreja não foi pensada e feita por homens, mas foi criada por meio do Espírito, é e continua a ser criatura do Espírito Santo. Assim, porém, instituição e Espírito estão na Igreja numa relação muito diferente da que as mencionadas correntes de pensamento gostariam de nos sugerir. Assim a instituição não é simplesmente uma estrutura que se pode modificar ou demolir à vontade, que não teria nada a ver com a realidade da fé como tal. Assim esta forma de corporeidade pertence à própria Igreja. A Igreja de Cristo não está escondida de modo imperceptível por trás das múltiplas configurações humanas, mas existe realmente, como Igreja verdadeira, que se manifesta na profissão de fé, nos sacramentos e na sucessão apostólica. O Vaticano II, com a fórmula do "subsistit", conformemente à tradição católica - queria portanto dizer exatamente o contrário do relativismo eclesiológico: a Igreja de Jesus Cristo existe realmente. Ele próprio a quis, e o Espírito Santo a criou continuamente a partir de Pentecostes, embora contra toda falência humana, e a sustenta na sua identidade essencial. A instituição não é uma exterioridade inevitável mas teologicamente irrelevante ou até daninha, mas pertence no seu núcleo essencial à concretitude da Encarnação. O Senhor mantém a sua palavra: "As portas do inferno não prevalecerão contra ela".
Neste ponto, torna-se necessário examinar de modo um pouco mais preciso a palavra "subsistit". O Concílio diferencia-se com esta expressão da fórmula de Pio XII, que na Encíclica "Mystici Corporis Christi" dissera: a Igreja católica "é" (est) o corpo místico único de Cristo. Na diferença entre "subsistit" e "est" esconde-se todo o problema ecumênico. A palavra subsistit deriva da filosofia antiga, posteriormente desenvolvida na escolástica. A ela corresponde a palavra grega "hypostasis", que na cristologia tem um papel central, para descrever a união da natureza divina e humana na pessoa de Cristo. "Subsistere" é um caso especial de "esse". É o ser na forma de um sujeito a se stante (que se mantém por si só).
Trata-se aqui exatamente disso. O Concílio pretende dizer-nos que a Igreja de Jesus Cristo como sujeito concreto neste mundo pode ser encontrada na Igreja católica. Isto pode acontecer só uma vez e a concepção segundo a qual o Subsistit se deveria multiplicar justamente não capta o que se pretendia dizer. Com a palavra subsistit o Concílio queria exprimir a singularidade e a não multiplicabilidade da Igreja católica: a Igreja existe como sujeito na realidade histórica. A diferença entre subsistit e estcontém, porém, o drama da divisão eclesial. Embora a Igreja seja apenas uma e subsista num único sujeito, também fora desse sujeito existem realidades eclesiais - verdadeiras Igrejas locais e diferentes comunidades eclesiais. Uma vez que o pecado é uma contradição, esta diferença entre subsistit e est não pode, em última instância, ser plenamente resolvida do ponto de vista lógico.
No paradoxo da diferença entre singularidade e concretitude da Igreja, por um lado, e existência de uma realidade eclesial fora do único sujeito, por outro, reflete-se a contraditoriedade do pecado humano, a contraditoriedade da divisão. Tal divisão é algo de totalmente outro em relação à dialética relativista acima descrita, na qual a divisão dos cristãos perde o seu aspecto doloroso e na realidade não é uma fratura, mas só o manifestar-se das múltiplas variações de um único tema, no qual todas as variações, de certo modo, têm razão e de certo modo não a têm. Na realidade, não existe então uma necessidade intrínseca da busca da unidade, pois na verdade de qualquer modo a única Igreja está em toda parte e em nenhum lugar. O cristianismo, portanto, na realidade existiria só na dialética correlação de variações contrapostas. O ecumenismo consiste no fato de que todos, por assim dizer, se reconhecem reciprocamente, pois todos seriam apenas fragmentos da realidade cristã. O ecumenismo seria, pois, a resignação a uma dialética relativista, pois o Jesus histórico pertence ao passado e a verdade permanece, de qualquer forma, oculta.

A perspectiva do Concílio é completamente diferente: que na Igreja católica esteja presente o subsistit do único sujeito Igreja, não é de fato mérito dos católicos, mas apenas obra de Deus, que Ele faz perdurar apesar do contínuo demérito dos sujeitos humanos. Estes não podem gabar-se disso, mas tão-somente admirar a fidelidade de Deus, envergonhando-se de seus próprios pecados e ao mesmo tempo cheios de gratidão. Mas pode-se ver o efeito de seus próprios pecados: todo o mundo vê o espetáculo das comunidades cristãs divididas e antagônicas, que reivindicam reciprocamente as suas pretensões à verdade e assim aparentemente tornam vã o rogo de Cristo às vésperas de sua paixão. Enquanto a divisão como realidade histórica é perceptível a todos, a subsistência da única Igreja na figura concreta da Igreja católica só pode ser percebida como tal na fé. Uma vez que o Concílio Vaticano II observou este paradoxo, justamente por isso proclamou como um dever o ecumenismo como busca da verdadeira unidade e o confiou à Igreja do futuro.
Chego à conclusão. Quem quer compreender a orientação da eclesiologia conciliar não pode deixar de lado os capítulos 4-7 da Constituição, nos quais se fala dos leigos, da vocação universal à santidade, dos religiosos e da orientação escatológica da Igreja. Nestes capítulos volta mais uma vez ao primeiro plano o objetivo intrínseco da Igreja, aquilo que é mais essencial à sua existência: trata-se pois da santidade, da conformidade a Deus - que no mundo haja espaço para Deus, que Ele possa nele habitar e assim o mundo se torne o seu "reino". A santidade é algo mais que uma qualidade moral. Ela é o habitar de Deus com os homens, dos homens com Deus, a "tenda" de Deus entre nós e em meio a nós (Jo 1, 14). Trata-se do novo nascimento - não da carne e do sangue, mas de Deus (Jo 1, 13). A orientação à santidade é idêntica à orientação escatológica, e de fato agora esta a partir da mensagem de Jesus é fundamental para a Igreja. A Igreja existe para que se torne morada de Deus no mundo e seja assim "santidade": por isso se deveria competir na Igreja, não por ter mais ou menos direitos de precedência, pela ocupação dos primeiros lugares. Tudo isto é em seguida mais uma vez retomado e sintetizado no último capítulo da Constituição sobre a Igreja, que trata da Mãe do Senhor.
À primeira vista a inserção da mariologia na eclesiologia efetuada pelo Concílio poderia parecer um tanto casual. É verdade do ponto de vista histórico que de fato uma maioria bastante pequena de padres decidiu por esta inserção. Mas de um ponto de vista mais interior, esta decisão corresponde perfeitamente à orientação do conjunto da Constituição: só se se compreende esta correlação se compreende corretamente a imagem da Igreja que o Concílio queria traçar. Nesta decisão foram aproveitadas as pesquisas de H. Rahner, A. Müller, R. Laurentin e Karl Delahaye, graças aos quais a mariologia e a eclesiologia foram ao mesmo tempo renovadas e aprofundadas. Sobretudo Hugo Rahner mostrou de modo grandioso, a partir das fontes, que toda a mariologia foi pensada e determinada pelos padres antes de tudo como eclesiologia: a Igreja é virgem e mãe, é concebida sem pecado e carrega o peso da história, sofre e no entanto já foi assunta ao céu. Muito lentamente se revela no decurso do desenvolvimento sucessivo que a Igreja é antecipada em Maria, em Maria é personificada e que, reciprocamente, Maria não está como um indivíduo isolado e fechado em si mesmo, mas traz em si todo o mistério da Igreja. A pessoa não é fechada de modo individualista, e a comunidade não é compreendida coletivisticamente de modo impessoal; ambas se superpõem uma à outra de modo inseparável. Isto já vale para a mulher do Apocalipse, tal como aparece no capítulo 12: não é correto limitar esta figura exclusivamente, de modo individualista, a Maria, porque nela é conjuntamente contemplado todo o povo de Deus, o antigo e o novo Israel, que sofre e no sofrimento é fecundo; mas tampouco é correto excluir dessa imagem Maria, a mãe do Redentor. Assim, na superposição entre pessoa e comunidade, como a encontramo neste texto, já é anticipado o entrelaçamento de Maria e Igreja, que em seguida foi lentamente desenvolvido na teologia dos Padres e finalmente retomado pelo Concílio. Que mais tarde ambas se tenham separado, que Maria tenha sido vista como um indivíduo cheio de privilégios e por isso infinitamente distante de nós, e a Igreja, por sua vez, de modo impessoal e puramente institucional, prejudicou igualmente tanto a mariologia quanto a eclesiologia. Operam aqui as divisões que o pensamento ocidental atuou particularmente e que, aliás, têm seus bons motivos. Mas se quisermos compreender corretamente a Igreja e Maria, devemos saber retornar a antes dessas divisões, para compreender a natureza supra-individual da pessoa e sipra-institucional da comunidade justamente ali onde pessoa e comunidade são reconduzidas às suas origens a partir da força do Senhor, do novo Adão. A perspectiva mariana da Igreja e a perspectiva eclesial, histórico-salvífica de Maria nos reconduzem em última instância a Cristo e ao Deus trinitário, porque aqui se manifesta o que significa santidade, o que é a morada de Deus no homem e no mundo, o que devemos entender por tensão "escatológica" da Igreja. Só assim o capítulo de Maria dá acabamento à eclesiologia conciliar e nos leva de volta ao seu ponto de partida cristológico e trinitário.
Para dar uma amostra da teologia dos Padres, gostaria, para concluir, de propor um texto de santo Ambrósio, escolhido por Hugo Rahner: "Assim, pois, estai firmes no terreno do vosso coração!... O que significa estar, o apóstolo nos ensinou, Moisés o escreveu: "O lugar em que estás é terra santa". Ninguém está, senão aquele que está firme na fé... e mais uma palavra está escrita: "Tu, porém, está firme comigo". Tu estás firme comigo se estás na Igreja. A Igreja é a terra santa, na qual devemos estar... Está pois firme, e na Igreja. Está firme ali, onde eu quero aparecer a ti, ali permaneço junto a ti. Onde está a Igreja, lá é o lugar firme do teu coração. Sobre a Igreja se apóiam os fundamentos da tua alma. De fato, na Igreja eu te apareci como outrora na sarça ardente. A sarça és tu, eu sou o fogo. Fogo na sarça eu sou na tua carne. Fogo eu sou, para iluminar-te; para queimar as espinhas dos teus pecados, para dar-te o favor da minha graça".
© L'OSSERVATORE ROMANO Sábado, 4 de março de 2000

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